quinta-feira, 26 de julho de 2012

SABEDORIA...

AOS QUE GOSTAM DE OUVIR A PALAVRA DE DEUS, O SENHOR DAS ESTÓRIAS... UM SILÊNCIO ESCRITO PARA ESTA NOITE...

                E um jovem que se sentia desorientado lhe pediu: “Senhor das Estórias, fale-nos sobre a sabedoria...”.
                Ele parou, fechou os olhos e falou pausadamente:

                “Sabedoria é a arte de degustar a vida como se degusta a comida. Prova-se um aperitivo da vida com a boca e então se decide se aquilo é digno de ser comido. O sábio é um degustador. Há pessoas que têm um jeito suíno de comer: comem de tudo, sem discriminar. O degustador vai aos poucos, provando pequenos bocados. Cada bocado tem um gosto diferente. Os poemas sagrados estão cheios de pequenas experiências de degustação, coisas boas de se comer, coisas que são indignas de serem comidas. Deus não é objeto do pensamento. É objeto de degustação. Provai e vede que Deus tem gosto bom... Degustem esses aperitivos...”

                “Um grão de trigo permanecerá ele só, a menos que caia na terra e morra. Morrendo, ele se transformará em muitos”.

                “É preciso contar os nossos dias de tal maneira que alcancemos corações sábios”.

                “Quem não muda sua maneira adulta de ver e sentir e não se torna como criança jamais será sábio”.

                “Se o seu inimigo bater na sua face direita, volte-lhe também a esquerda. Não se pode vencer o mal com o mal. Só se vence o mal com o bem. Assim, se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer”.       
                “Se tiver sede, dê-lhe de beber”.
                “Ninguém jamais viu a Deus. Sabemos que estamos em Deus se nos amarmos uns aos outros”.
               
                “Mais vale visitar a casa em luto do que a casa em festa, porque ali o desfecho de cada homem vem à consciência de quem vive”.

                “Um coração alegre aformoseia o rosto, mas um espírito abatido resseca os ossos”.

                “Há amigo que é mais fiel que um irmão”.

                “Quem ama o dinheiro jamais se sentirá satisfeito. Doce é o sono do trabalhador, quer coma pouco, quer muito. Mas a fartura dos ricos não os deixa dormir. Melhor é ir a um velório que ir a um banquete. Porque no velório se vê o fim de todos os homens. Melhor é a tristeza que o riso. Porque com a tristeza do rosto se faz melhor o coração. Não sejas demasiadamente justo nem demasiadamente sábio, para que não destruas a ti mesmo”.

                “Mais vale um cão vivo que um leão morno, porque para aqueles que estão vivos ainda há esperança. Os vivos sabem que vão morrer, mas os mortos não sabem coisa alguma, nem tampouco terão eles recompensa, porque a sua memória jaz no esquecimento. Porque a vida são brumas e espumas”.

                “A corrida não resulta da agilidade. Nem da vontade, a batalha. Nem da sabedoria, o ganha-pão. Nem da habilidade, a riqueza. Nem do saber, a estima. Para tudo há o concurso do tempo e do acaso. Além disso, os homens desconhecem a sua hora. Como peixes colhidos numa rede funesta, como pássaros presos na armadilha, assim são colhidos pelo tempo nefasto que lhes sobrevém de improviso”.

                “Basta uma mosca morta para estragar o unguento do perfumista. Assim, uma pequena tolice pesa mais que a sabedoria e a honra”.

                “Aquele que não se farta de riquezas, não consegue conciliar o sono”.

                “O choro pode durar toda uma noite, mas a alegria vem pela manhã”.

                “Os que semeiam com lágrimas, com alegria ceifarão”.

                “E serás como um jardim regado, uma fonte cujas águas correm sempre”.

                “Um ultimo aviso: escrever livros e mais livros não tem limite. E o muito estudo é enfado da carne...”.

                O Senhor das Estórias ficou em silêncio e sorriu para o jovem.
TEXTO RETIRADO DO LIVRO “ PERGUNTARAM-ME SE ACREDITO EM DEUS” DE RUBEM ALVES. PÁG 159.


terça-feira, 24 de julho de 2012

DROPES...



                Dostoievski observou que os seres humanos não estão à procura de Deus;estão à procura do milagre. Deus é o objeto mágico que, se propriamente manipulado, faz minha vontade, realiza o meu pedido. Traduzindo em linguagem grosseira: não é ela ou ele que eu desejo, ao me casar. No mundo do “eu-tu”, o otbro ouve atentamente e acolhe o tu como parte de si mesmo. Pode ser um cachorro, uma árvore, uma criança, um ancião, até mesmo o chefe... E, ao assim me relacionar, um mundo humano é criado ao meu redor, mundo em que as entidades não são objetos de uso, mas objetos de prazer. Eu inclusive. Buber conclui sua filosofia dizendo que Deus não está aqui, não está ali; Deus está “entre”, na relação, no hífen... Deus se encontra no espaço misterioso e invisível da relação.
                Da Vinci afirmava que só se pode amar aquilo que se conhece.
                Eu, presunçoso, afirmo que só se pode conhecer aquilo que se ama.


TEXTO RETIRADO DO LIVRO “PENSAMENTOS QUE PENSO QUANDO NÃO ESTOU PENSANDO” DE RUBEM ALVES, PAGINA 93

sábado, 30 de junho de 2012

O lobo e o falcão




“Ele, guerreiro, cavalgava um cavalo negro. Seus olhos eram tranquilos, seu rosto era triste, seus cabelos eram dourados como a luz do sol, e a sua voz só se ouvia depois de longos silêncios. Ela era diáfana como a lua, seus cabelos eram negros como a noite, e sua voz era mansa como a luz das estrelas. Eles muito se amavam e o seu amor era belo”.

                Você disse estar enfeitiçada: você e o seu amado. Disse que o que está acontecendo com vocês é o que aconteceu no filme  O feitiço de Áquila, sobre que já escrevi. Disse que eu sou feiticeiro. Pediu um contrafeitiço. De fato, sou um feiticeiro. Conto estórias para quebrar feitiços. É isso que faz um psicanalista contador de estórias. Estórias têm um poder mágico. Elas produzem metamorfoses inesperadas nas pessoas. Quem diz é Guimarães Rosa. E se ele, bruxo mor, disse, quem sou eu para contradizer?
                Assim, no exercício de meus poderes de feiticeiro, vou recontar a estória. Menos o final. Preste bem atenção no final. Ele vai ser diferente. É nele que está o contrafeitiço.
                “Ele, guerreiro, cavalgava um cavalo negro. Seus olhos eram tranquilos, seu rosto era triste, seus cabelos eram dourados como a luz do sol, e a sua voz só se ouvia depois de longos silêncios.
                Ela era diáfana como a lua, seus cabelos eram negros como a noite, e a sua voz era mansa como a luz das estrelas.
                Eles muito se amavam e o seu amor era belo.
                Mas havia naquela terra um feiticeiro que manipulava poderes do mal. Ele viu a moça-lua e se apaixonou por ela. Quis tê-la para si mesmo. Mas ela amava o guerreiro e repeliu os gestos do feiticeiro. Este, enfurecido, lançou sobre os amantes um feitiço: estariam condenados, pelo resto de seus dias, a nunca se tocarem. A mulher seria como a lua. Só apareceria à noite, depois de o sol se pôr. Durante o dia ela seria um falcão caçador, branco, com bico de garras de rapina. E seu amado seria como o sol. Só apareceria durante o dia, depois de o sol nascer. Durante a noite ele seria um lobo negro caçador.
                E assim aconteceu. Durante o dia o guerreiro cavalgava o seu cavalo levando no ombro sua amada, falcão branco. Vez por outra o falcão alçava vôo, subia até as alturas e, de repente, com um pio estridente, mergulhava como uma flecha para pegar alguma presa. Durante a noite o falcão voltava a ser mulher, e ficava ao lado do seu amado, lobo negro, que se deitava aos seus pés e lambia suas mãos. Vez por outra ele se levantava e entrava sozinho na floresta escura, para viver a sua vida selvagem de lobo.
                Mas havia um breve momento encantado quando eles quase se tocavam. Ao pôr-do-sol, quando a luz do dia se misturava com o escuro da noite, era o momento mágico: o falcão voltava a ser mulher e o guerreiro se transformava em lobo. Ao nascer do sol, quando o escuro da noite se misturava com a luz do dia, o lobo voltava a ser guerreiro e a mulher se transformava em falcão. Nesse brevíssimo momento os dois apareciam um ao outro como sempre tinham sido e viviam por um segundo a beleza do seu amor. Suas mãos se estendiam, uma querendo tocar a outra – mas o toque era impossível. Antes que suas mãos se tocassem a metamorfose acontecia. E não podiam se amar como homem e mulher.
                O guerreiro amava o falcão. Ele sabia que dentro do falcão vivia sua amada de voz mansa. Mas ela vivia encantada, adormecida. Dela, o que ele tinha era apenas a ave muda, mergulhada no silêncio do seu mistério.
                Ele acariciava suas penas – mas um falcão não é uma mulher. O falcão não era a sua amada. Ele a carregava na pequena esperança do momento encantado e na grande esperança de que, um dia, o feitiço fosse quebrado.
                A mulher amava o lobo. Ela sabia que dentro do lobo vivia o guerreiro de olhos profundos que ela amava. Mas ele vivia encantado, adormecido. Dele, ela só tinha os olhos mergulhados no silêncio. Ela acariciava o pelo negro – mas um lobo não é um homem. O lobo não era o guerreiro que ela amava. Ela o acariciava na pequena esperança do momento encantado e na grande esperança de que, um dia, o feitiço seria quebrado.
                O amor pode muito. Ele é o poder bruxo, mais forte que os feitiços maus. E aconteceu que, um dia, depois de uma luta horrenda, o feiticeiro foi morto e o feitiço foi quebrado. E o guerreiro voltou a ser guerreiro que sempre fora, e a mulher voltou a ser a mulher que sempre fora. E suas mãos puderam se tocar e tudo foi alegria e eles se casaram e viveram felizes para sempre...”.
                Assim termina a estória, com um final feliz. Pois o meu contrafeitiço exige que o fim da estória seja esse outro. E é esse outro fim que passo a lhe contar.
                O guerreiro, não podendo suportar a tristeza da sua condição, resolveu procurar um feiticeiro bom que tivesse poder maior que o feiticeiro mau. Ele se chamava Merlin. O guerreiro foi à sua morada-caverna, no alto de uma montanha, levando ao ombro o seu falcão. Lá chegando contou-lhe a sua desgraça e formulou o seu pedido: queria que ele e sua amada deixassem de ser lobo e falcão e voltassem a ser homem e mulher para que pudessem se amar.
                Merlin fez um grande silêncio e lhe disse:
                Não posso atender ao seu pedido porque isso seria a sua perdição, o fim do seu amor. A magia nada cria. A magia só tem o poder para trazer das profundezas aquilo que lá existia. Você, no fundo da sua alma, é um lobo selvagem. A sua amada, no fundo da sua alma, é um falcão selvagem. Ela o amava porque via, no fundo dos seus olhos mansos, um lobo que andava sem medo de florestas escuras. E você a amava porque via, no fundo dos seus olhos mansos, um falcão que voava sem medo nas alturas. Se eu, por um feitiço, destruir o selvagem que há em você e o selvagem que há nela, não mais haverá mistérios dentro dos seus olhos. Vocês se transformarão em animais domésticos: um cão que abana o rabo para ganhar um osso, uma pata que não consegue voar. Vocês viverão sempre juntos, até que a morte os separe – animais domésticos não se separam; eles têm medo das matas escuras e das alturas nas montanhas. Domesticados, vocês se transformarão em seres banais. Você não terá estórias das matas escuras para lhe contar nem ela terá estórias de voos pelos picos gelados das montanhas. Sobre o que vocês conversarão? O seu amor se transformará num tédio interminável.
                O guerreiro chorou. “Então, nosso amor está condenado? “Não”, disse Merlin.
                Há esperança, mas não do jeito como vocês querem. O que vou fazer não é desfazer o feitiço, mas rearranjar o feitiço. Quando os primeiros raios do sol iluminarem o horizonte, você se transformará em falcão. Você irá para o mistério das matas e ela, para os mistérios dos seus.  E assim vocês serão lobo e falcão, cada um no seu caminho, sozinhos, até que o sol se ponha. Quando o sol se puser e a primeira estrela aparecer, você voltará a ser guerreiro-sol, e ela voltará a ser a  mulher-lua. Aí então, quando cessam os barulhos e a correria do dia, vocês se encontrarão, se abraçarão e se amarão.
                Ditas essas palavras, Merlin ficou silencioso. Acendeu a fogueira na sua caverna, porque estava ficando frio. O sol estava se pondo. A noite se aproximava. Aceso o fogo, ele pronunciou palavras de bruxedo e despediu o guerreiro com o seu falcão.
                O guerreiro, falcão no ombro, começou a longa descida da montanha para a planície. Seu rosto estava iluminado pelos últimos raios do sol que se punha e foi então que, no meio do céu, ele viu a primeira estrela que aparecia...

TEXTO RETIRADO DO LIVRO “NAVEGANDO” DE RUBEM ALVES, PAGINA 57

quinta-feira, 28 de junho de 2012

POR UM CASAMENTO...



“O amor é dado de graça,
É semeado no vento, na cachoeira,
No eclipe...”
(Carlos Drummond de Andrade)

                O meu fascínio pelos ritos me faz suspeitar que, numa outra vida, é possível que eu tenha sido um sacerdote ou um feiticeiro. Hoje, pouca gente sabe o que são. Um rito acontece quando um poema, achando que as palavras não bastam, encarna-se em gestos, em comida e bebida, em cores e perfumes, em música e dança. O rito é um poema transformado em festa! Escrevo hoje para os que casam, por meio de que, fascinados por um rito, se esqueçam do outro... Porque, caso não saibam, é desse outro, esquecido, que o casamento depende.
                O primeiro rito, sobre que todos sabem, e para o qual se fazem convites, é feito com pedras, ferro e cimento.
                Há um outro rito, secreto, que se faz com o vôo das aves, com água, brisa, espuma e bolhas de sabão.
                O primeiro rito nasceu de uma mistura de alegria e tristeza. Viram o vôo do pássaro, ficaram alegres. Mas logo o pássaro se foi e ficaram tristes. Não lhes bastava que a alegria fosse infinita enquanto durasse. Queriam que ela fosse eterna. E disseram: “Queremos o vôo do pássaro, eternamente”. E que coisa melhor existe para conter o vôo do pássaro que uma gaiola? E assim fizeram. Engaiolaram o pássaro e chamaram os mágicos, ordenando-lhes que dissessem as palavras do bruxedo: “Para sempre, até a morte os separe”.
                A definição mais precisa desse rito, eu a ouvi da boca de um sacerdote. “Não é o amor que faz um casamento”, ele afirmou. “São as promessas”.
                Assustei-me. Sabia que assim, era no civil, casamento-contrato, rito frio da sociedade, para definir os deveres (sobre os prazeres se faz silêncio) e a partilha dos bens e dos males. Sociedade é cois sólida. Precisa de pedra, ferro e cimento. Garantias. Testemunhas. Documentos. O futuro há de ser da forma como o presente o desenhou. Para isso, os contratos. E a substância do contrato são as promessas. Sim. Ele estava certo. “Não é o amor que faz o casamento. São as promessas.”.
                Promessas são as palavras que engaiolam o futuro. Por isso elas se fazem acompanhar sempre de testemunhas. Se o pássaro engaiolado, em algum momento do futuro, mudar de sentimento e de ideia e resolver voar, as testemunhas estão lá para reafirmar as promessas feitas no passado. O dito e contratado não pode ser mudado.
                Muitas são as promessas que os noivos podem fazer: prometo dividir os meus bens, prometo não maltrata-la, prometo não humilha-lo, prometo protegê-la, prometo cuidar de você na doença. Atos exteriores podem ser prometidos.
                Assim se fazem os casamentos, com pedra, ferro, cimento e amor. Mas as coias do amor não podem ser prometidas. Não posso prometer que, pelo resto da minha vida, sorrirei de alegria ao ouvir seu nome. Não posso prometer que, pelo resto de minha vida, sentirei saudades na sua ausência.
                Sentimentos não podem ser prometidos. Não podem ser prometidos porque não dependem da nossa vontade. Sua existência é efêmera. Só existem no momento. Como o vôo dos pássaros, o sopro do vento, as cores do crepúsculo. Esse é um rito de adultos, porque somente os adultos desejam que o futuro seja igual ao presente. A sua gravidade, a sua seriedade, os passo cadenciados, processionais, as suas roupas, as suas máscaras, as palavras sagradas, definitivas, para sempre, o que Deus ajunta os homens não podem separar, a exaltação dos deveres: tudo dá testemunho de que esse é um ritual adulto.
                O outro ritual se faz com o vôo das aves, com água, espuma e bolhas de sabão. Secreto, para ele não há convites. Secreto foi o casamento de Abelardo e Heloisa, o mais belo amor jamais vivido (proibido).
                Não há convites, nem lugar certo, nem hora marcada: simplesmente acontece. “Amor é dado de graça,/ é semeado no vento, / na cachoeira, no eclipe...” (Drummond). Não precisa de altares: sempre que ele acontece o arco-íris aparece: a promessa de Deus, porque Deus é amor. Pode ser sombra de uma árvores, um carro, uma cozinha, um banco de jardim, um vagão de trem, um aeroporto, uma mesa de bar, uma caminhada ao luar...
                Não há promessas para amarrar o futuro. Há confissões de amor para celebrar o presente. “Como és formosa, querida minha, como és formosa! Há mel debaixo da tua língua”, “ O teu rosto, meu amado, é um canteiro de bálsamo e os teus lábios são lírios...” (Bíblia Sagrada); “Eu sei que vou te amar/ por toda a minha vida eu vou te amar/ em cada despedida eu vou te amar / desesperadamente eu sei que vou te amar...” (Vinicius); “Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo tua matéria, fauna e flora... Te amo com uma memória imperecível” (Adélia Prado).
                E os convidados, muitos poucos, vestem-se como crianças: pés descalços, balões coloridos nas mãos: eles sabem que o amor fica somente se permaneceremos crianças, eternamente...

                “Ego, conjugo vobis in matrimonium”, diz um velho com rosto de criança.

                “Para vós que invoco os prazeres que voam nos ventos e as alegrias que moram nas cores: beleza, harmonia, encantamento, magia,mistério, poesia: que essas potencias divinas lhe façam companhia.
Que o sorriso de um seja, para o outro, festa, fartura, mel, peixe assado no fogo, coco maduro na praia, onda salgada do mar...
Que as palavras do outro sejam tecido branco, vestido transparente de alegria, a ser despido por sutil encantamento.
E que no final das contas e no começo dos contos, em nome do nome não-dito, bem-dito, em nome de todos os nomes ausentes e nostalgias presentes, de ágape e filia, amizade e amor, em nome do nome sagrado, do pão partido e do vinho bebido, sejam felizes os dois, hoje, amanha e depois...”

TEXTO RETIRADO DO LIVRO: “NAVEGANDO”, DE RUBEM ALVES, PAGINA 45.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

VOCÊ E O SEU RETRATO



“O seu retrato mais se parece com você do que você mesma...”


                Quem fala “retrato” já confessou a idade. É velho. Hoje se diz “foto”.
                Segundo o Aurélio, as duas palavras são sinônimas. Não são. Os dicionários frequentemente se enganam. “Retrato” e “foto” são habitantes de mundos que não se tocam.
                A “foto” pertence ao mundo da banalidade: o piquenique, o turismo, a festa. Combina com Bic, com chicletes, com Disneylândia. Tirar uma foto é gesto automático, não precisa pensar. É só apertar um botão.
                Um “retrato”, ao contrário, só aparece ao fim de uma meditação metafísica, religiosa. É o ponto final de uma busca. O retratista busca capturar um pássaro mágico invisível que mora na pessoa a ser retratada e que, vez por outra, faz uma aparição efêmera. Um retratista é um caçador de almas. Roland Barthes escreveu um livro maravilhoso sobre a fotografia: câmara clara. Gostava tanto dele que tinha dois exemplares. Emprestei-os a amigos de memória curta. Acontece que a minha memória é mais curta que a deles. Esqueci-me deles. Perdi os livros. Mas minha memória é boa para as coisas que leio e amo. Lembro-me de Barthes examinando cuidadosamente retratos antigos de sua mãe morta. Tinha saudades dela. Mas faltava nelas a essência amada. Não eram fotografias. Depois de muito procurar encontrou a essência amada numa fotografia velha de sua mãe menina.
                Li muitos poemas de apaixonados. Via de regra, os apaixonados se perdem em sua própria paixão. Como se fossem canções sem palavras. Comovem os sentimentos sem provocar o pensamento. Exceção é o poema de Cassiano Ricardo “Você e seu retrato”. Nele, o amor não se afogou em sentimentos. Deseja se conhecer a si mesmo. Por isso filosofa e faz essa estranha pergunta-confissão:
“Por que tenho saudade
De você, no retrato,
Ainda que o mais recente?
E por que um simples retrato,
Mais que você, me comove,
Se você mesma está presente?”

É mais fácil amar o retrato. Eu já disse que o que se ama é uma “cena”. “Cena” é um quadro belo e comovente que existe na alma antes de qualquer experiência amorosa. A busca amorosa é a busca da pessoa que, se achada, irá completar a cena. Antes de te conhecer eu já te amava... E então, inesperadamente, nos encontramos com o rosto que já conhecíamos antes de o conhecer. E somos então possuídos pela certeza absoluta de haver encontrado o que procurávamos. A cena está completa. Estamos apaixonados.
                Cassiano Ricardo não fala de cena; fala de retrato. Não consegue entender a distancia dolorosa que existe entre o retrato e a pessoa amada. A coisca que amo não está em você, minha amada. Onde terá se escondido? Olho para você e sinto uma sensação de estranheza: como se você não estivesse lá. Por isso tenho saudade de você – quando você mesma está presente. Quero você no retrato, porque você não está em você: “... o seu retrato mais se parece com você do que você mesma (ingrato)”.
                A paixão é o mais puro de todos os sentimentos: ela deseja uma coisa somente. Mas essa coisa que ela deseja, e que se mostra no retrato, mora num corpo habitado por muitas outras imagens, não amadas. Juntas, no mesmo corpo, a Bela e a Fera. A estória é ate generosa porque as feras são belas. Haverá coisa mais bela que um tigre? Lya Luft dizia do seu amado, Hélio Pelgrino, que ele era uma fera: batia portas, brigava no transito, rachou um telefone que não dava linha. Mas nele morava um inesperado riso de menino.
                As feras podem ser amadas porque é possível amar o terrível. Mas, e os sapos? Nojentos. O retrato, tocado pelo sapo, transforma-se então em caricatura ridícula. Não acontece de repente. García Márquez diz que a diferença está no pingo de urina na tampa da privada. Não é xixi, coisa de criança, carinhosa. É urina nojenta. Porco. Pingo de urina na tampa da privada destrói qualquer deus. Um jeito de vestir; um olhar estranho, que examina furtivamente sem nada dizer; uma música estranha numa palavra conhecida: tudo são pingos de urina. E a perversa metamorfose do retrato em sapo se opera.
                Por isso seu retrato me dá mais saudade de você que você mesma. No retrato você está sempre abraçada à lua. E no meu retrato, guardado em sua caixa, eu estou sempre abraçado ao sol. No retrato mora a imagem adorada:

“E, talvez, porque o retrato
já sem o enfeite das palavras tenha um ar de lembrança.
Talvez porque o retrato
(exato, embora malicioso),
Revele algo de criança
(como, no fundo da água, um coral em repouso)”

                E, no final, a revelação terrível e amorosa: “Talvez porque no retrato/você está imóvel,/ (sem respiração...)”. Morta? Os crimes de amor são sempre para preservar você, no retrato- contra você, presente. Entre você presente, e o seu retrato, prefiro o retrato. Oscar Wilde, na The Ballad of the Reading Gaol, diz o seguinte: “Pois todos os homens matam a coisa que eles amam...” Compara-se com o grito final de Don José, na ópera Carmen: “sim. Eu a matei, eu – a minha Carmen adorada!”
                O poema termina com uma afirmação comovente: “Talvez porque todo retrato é uma retratação”. Retratação: desdizer, pedir perdão. Desdigo o que eu disse. Peço perdão. Disse que amava o retrato mais que você. Mas o retrato é mentiroso. O retrato e, morta no papel, a coisa viva que só tem viva no seu corpo, e que aparece e desaparece, no meio das feras e dos sapos. O amor sobrevive na esperança de reaparições. Que a amada apareça tal qual Nossa Senhora, abraçada à lua; e o amado, tal qual Nosso Senhor, abraçado ao sol. Pode ser que vocês não acreditem: mas foi para esse momento efêmero da felicidade que o universo foi criado.

TEXTO RETIRADO DO LIVRO “NAVEGANDO DE RUBEM ALVES, PAGINA 39

quinta-feira, 21 de junho de 2012

EM LOUVOR À INUTILIDADE




Em louvor à inutilidade


“As crianças, do jeito como saem das mãos de Deus, são brinquedos inúteis, não servem para coisa alguma...”

                Brinquedo não serve para nada. Objeto inútil. Útil é uma coisa que pode ser usada para se fazer algo. Por exemplo, uma panela.
                Ela é útil. Com ela se fazem feijoadas, moquecas e sopas. Uma escada também é útil: pode ser usada para se subir no telhado, para apanhar jabuticabas nos galhos altos, para trocar uma lâmpada. Um barco é útil: pode ser usado para atravessar um rio. Uteis são o palito, a vassoura, o canivete, o pente, a camisinha, a aspirina, o lápis, a bicicleta, o computador e os meus dedos que digitam as palavras que penso.
                Convidaram-me para dar uma palestra para pessoas de terceira idade. Comecei minha fala de forma solene: “Então os senhores e as senhoras chegaram finalmente a essa idade maravilhosa em que podem se dar ao luxo de ser totalmente inúteis!” Pensaram que fosse xingamento, ofensa. E trataram, cada um, de me explicar sua utilidade. E exigiram ser colocados na caixa das coisas uteis, onde estavam a vassoura, o papel higiênico e o serrote. Mas eu só queria que eles fossem colocados no mesmo baú onde estavam os brinquedos.
                Lá em Minas era assim que se valorizava o marido, dizendo que ele morava na caixa de coias úteis: “ O Onofre é assim caladão, desengonçado e sem jeito. Mas marido melhor não pode haver. É sem defeito. Bom demais: não deixa faltar nada em casa...”
                As mães, sagazes, sabiam que um casamento duradouro depende da utilidade das esposas. Como a expressão “esposa útil” não fica bem, substituíram-na por “esposa prendada”. Sabedoria das mães sagazes: esposa prendada, casamento duradouro, mãe viúva abrigada. Preparavam suas filhas para o casamento transformando-as em ferramentas-complementos de panelas, agulhas e vassouras. Cozinhar, varrer, costurar: esses erma os saberes necessários à formação de uma mulher útil. Nunca ouvi falar, não conheço, ignoro qualquer esforço no sentido de desenvolver nos homens e nas mulheres os seus potencias de brinquedo. Afinal de contas, brinquedo é coisa inútil.
                O que se procura é um cavalo (ou égua) marchador, que não se espante com mau tempo, que fique amarrado no pau espantando moscas com o rabo sem relinchar: muito mais útil que um cavalo selvagem, lindo de se espiar, maravilhoso de se sonhar, mas impossível de se montar. Simetricamente, uma mulher submissa, caseira e trabalhadora vale mais que uma mulher com ideias próprias que voa por lugares não sabidos. Há um capitulo nas Sagradas Escrituras, no livro de Provérbios (31: 10-31), onde se encontra a mais fantástica ficção sobre a mulher virtuosa que eu jamais vi. Aquilo não é uma mulher; é uma máquina. Mulher faz-tudo, de um marido faz-nada. Porque não sobra nada para ele fazer. A descrição é tão doida que a única explicação que tenho para tal colar impossível de virtudes é o que o autor devia estar fazendo uma brincadeira, gozação amorosa com sua mulherzinha que não era nada daquilo, mas que tinha virtudes de brinquedo que ele adorava.
                Quando o valor das coias está na utilidade, no momento em que deixam de ser uteis são jogadas fora. Uma lâmpada queimada, uma caneta Bic vazia, um saquinho de chá usado: vão todos para o lixo. Na hora de despedir os empregos é sempre a lei da utilidade que funciona. Cozinheira que cozinha bem fica no emprego e tem aumento. Cozinheira que põe sal demais no feijão e deixa queimar o arroz é despedia. Esta é a lei da utilidade: o menos útil é jogado fora para que o mais útil tome o seu lugar. Minha máquina de escrever, faz mais de um ano que não toco nela. Isso vale para as pessoas. É a lei da selva, a sobrevivência do mais apto.
                Muitas pessoas chegam mesmo a colocar Deus nesse rol de utilidades, ao lado desses objetos-ferramentas. Claro, a ferramenta mais potente, capaz de fazer tudo o que as outras não fazem: encontrar chave perdida, curar câncer, fazer o filho passar no vestibular, segurar o avião lá em cima, impedir acidente de automóvel, encontrar casa para alugar ou homem ou mulher com quem casar. Toda vez que alguém diz: “Graças a Deus” está dizendo: “Ferramenta útil é esse Deus. Até agora fez tudo direitinho”.
                As crianças, do jeito como saem das mãos de Deus, são brinquedos inúteis, não servem para coisa alguma. Assim são a Ana Carolina, a Isabel, a Camila, a Flora, a Ana Paula, a Mariana, a Carol, a Aninha... É compreensível. Deus, segundo Jacob Boehem, místico medieval, é uma criança que só faz brincar. Ele não se dá bem com os adultos. Tanto assim que, no momento em que Adão e Eva pararam de brincar ficaram inúteis, Deus os expulsou do Paraíso. Fez isso não por não gostar deles, mas por medida preventiva: sabia que qualquer Paraíso vira inferno quando um adulto entra lá. Agora, para entrar outra vez no Paraíso, é preciso nascer de novo e virar criança. Aquela estória do livro de contabilidade de Deus, nas mãos de São Pedro, na entrada do céu, é tudo invenção de adulto com cabeça de banqueiro. Na verdade, o que acontece é o seguinte: Na porta do Paraíso está aquela Criança que Alberto Caeiro descreveu num longo poema. Ela não consulta livro e não pergunta nada. Só abre um baú enorme, onde estão guardados todos os brinquedos inventados e por inventar, e diz: “Escolha um para brincar comigo!”
                Quem ficar feliz e souber brincar entra. Mas muitos ficam bravos. Traziam, numa mala etiquetada de “boas obras”, todas as utilidades que haviam ajuntado. Queriam mostrá-las a Deus-Pai. Mas a Criança não se interessa pela mala. Os chegantes se sentem ofendidos. Desrespeito serem recebidos assim! Ficam desconfiados. Fecham a cara. Dizem que são pessoas serias. Para isso foram à escola – para serem transformados de meninos em adultos.
                A Criança lhes sorri e lhes diz que, naquela escola, eles não passaram. Não podem entrar no Paraiso. Ficaram de DP. “Voltem quando tiverem deixado de ser adultos. Voltem quando tiverem voltado a ser crianças. Voltem quando tiverem aprendido a brincar...”

TEXTO RETIRADO DO LIVRO “NAVEGANDO” DE RUBEM ALVES. PAGINA 15.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

QUERO VIVER MUITOS ANOS...



“Quero viver enquanto estiver acesa, em mim, a capacidade de me comover diante da beleza...”

Sim, eu quero viver muitos anos mais. Mas não a qualquer preço. Quero viver enquanto estiver acesa, em mim, a capacidade de me comover diante da beleza.
A comoção diante da beleza tem o nome de “alegria”, mesmo quando as lágrimas escorrem pela face. A alegria e a tristeza são boas amigas. Assim o disse a minha amiga Adélia: “A poesia é tão triste. O que é bonito enche os olhos de lágrimas. Por prazer da tristeza eu vivo alegre”.
Essa capacidade de sentir alegria é a essência da vida. Quase que disse “vida humana”, mas parei a tempo. Pões é muita presunção de nossa parte pensar que somente nós recebemos essa graça. Aquela farra de pulos, correria, mordidas e gestos de faz-de-conta em que se envolvem minha velha Doberman (nunca tive cachorro mais gentil!) e o Cocker novinha, nenê, aquilo é pura alegria. E o vôo do beija-flor, flutuando parado no ar, gozando a água fria que sai do esguicho – também isso é alegria. Lembrei-me de um místico que orava assim: “Ó Deus! Que aprendamos que todas as criaturas vivas não vivem só para nós, que elas vivem para si mesmas e para Ti. E que elas amam a doçura da vida tanto quanto nós”.
Na alegria, a natureza atinge seu ponto mais alto: ela se torna divina. Quem tem alegria tem Deus. Nada existe, no universo, que seja maior que esse dom . o universo inteiro, com todas as suas galáxias: somos maiores e mais belos do que ele, porque nós podemos nos alegrar diante da beleza dele, enquanto ele mesmo não se alegra com coisa alguma.
Quero viver muito, mas o pensamento da morte não me dá medo. Me dá tristeza. Este mundo é tão bom. Não quero ser expulso do campo no meio do jogo. Não quero morrer com fome. Há tantos queijos esperando ser comidos. Quando o corpo não tiver mais fome, quando só existirem o enfado e o cansaço, então quererei morrer. Saberei que a vida se foi, a despeito dos sinais biológicos externos que parecem dizer o contrário. De fato, não há razoes para o medo. Porque só há duas possibilidades. Nada existe depois da morte. Neste caso, eu serei simplesmente reconduzido ao lugar onde estive sempre, desde que o universo foi criado. Não me lembro de ter sentido qualquer ansiedade durante essa longa espera. Meu nascimento foi um surgir do nada. Se isso aconteceu uma vez, é possível que aconteça outras. O milagre pode voltar a se repetir algum dia. Assim esperava Alberto Caeiro, orando ao Menino Jesus: “... E dá-me sonhos teus para eu brincar/ Até que nasça qualquer dia / Que tu sabes qual é...”.
Se, ao contrário, a morte for a passagem para outro espaço, como afirmam as pessoas religiosas, também não há razoes para temer. Deus é amor e, ao contrário do que reza a teologia cristã, ele não tem vinganças a realizar, mesmo que não acreditemos nele. E nem poderia ser de outra forma: eu jamais me vingaria dos meus filhos. Como poderia o “Pai Nosso” fazê-lo?
Mas eu tenho medo de morrer. Pode ser doloroso.
O que eu espero: não quero sentir dor. Para isso, há todas as maravilhosas drogas da ciência, as divinas morfinas, dolantinas e similares. Quero também estar junto das cosias e das pessoas que me dão alegria.
Quero meu cachorro – e se algum médico ou enfermeira alegar, em nome da ciência, que cachorros podem transmitir enfermidades, eu os mandarei para aquele lugar. Os que estão morrendo tornaram-se invulneráveis. Eles estão alem das bactérias, infecções e contradições. Lembro-me de um velhinho, meu amigo, que no leito de morte disse à filha que queria comer um pastel. “Mas papai”, ela argumentou, “fritura faz mal...”
Ela não sabia que os morituri estão além do que faz bem e do que faz mal.
Quero também ter a felicidade de poder conversar com meus amigos sobre a minha morte. Um dos grandes sofrimentos dos que estão morrendo é perceber que não há ninguém que os acompanhe até a beira do abismo. Eles falam sobre a morte e os outros logo desconversam. “Bobagem, você logo estará bom...” E eles então se calam, mergulham no silêncio e na solidão, para não incomodar os vivos. Só lhes resta caminhar sozinhos para o fim. Seria tão mais bonita uma conversa assim: “Ah, vamos sentir muito sua falta. Pode ficar tranquilo: cuidarei do seu jardim. As coisas que você amou, depois da sua partida, vão se transformar em sacramentos: sinais da sua ausência. Você estará sempre nelas...” Aí os dois se dariam as mãos e chorariam pela tristeza da partida e pela alegria de uma amizade assim tão sincera.
Alguns há que pensam que a vida é coisa biológica, o pulsar do coração, uma onda cerebral elétrica. Não sabem que, depois que a alegria se foi, o corpo é só um ataúde. E aí os teólogos e médicos, invocando a autoridade da natureza, dizem que a vida física deve ser preservada a todo custo... Mas a vida humana não é coisa da natureza. Ela só existe enquanto houver a capacidade para sentir a beleza e a alegria.
E assim, apoiados nessa doutrina cruel, submetem a torturas insuportáveis o corpo que deseja partir – cortam-no, perfuram-no, ligam-no a maquinas, enfiam-lhe tubos e fios para que a maquina continue a funcionar, mesmo diante de suas súplicas: “Por favor, deixem-me partir!” E é este o meu desejo final: que respeitem meu corpo, quando disser: “Chegou a hora da despedida”. Amarei muito aqueles que me deixarem ir. Como eu disse: amo a vida e desejo viver muitos anos mais, como Picasso, Cora Coralina, Hokusai, Zorba... Mas só quero viver enquanto estiver acesa a chama da alegria.

TEXTO RETIRADO DO LIVRO : NAVEGANDO. DE RUBEM ALVES. PAGINA 25

domingo, 20 de maio de 2012

A possessão demoníaca




                Mais poderoso que o nome do demônio é o riso. Quando ele começar a atormentá-lo, ponha-se a rir. O demônio ou demônios que moram em você fugirão espavoridos. Porque, como disse Nietzche, maravilhoso exorcista, os demônios são o “espírito da gravidade” e não suportam a leveza do riso.


                Sabendo que em épocas passadas pratiquei a psicanálise, você pediu que eu fizesse o diagnostico de uma perturbação que o aflige de tempos em tempos.
                Li a descrição de seus sintomas com a maior atenção. Você é uma pessoa educada, profissional competente, maduro, generoso, respeitado. Mas, repentinamente, por causa de um pequeno incidente, passa por uma súbita metamorfose. Você deixa de ser o que normalmente é e passa a ser um outro. O Mr. Hyde monstruoso da novela de Robert Louis Stevenson, The Strange Case of Dr. Jekyll na Mr. Hyde, publicada em português com o titulo O médico e o monstro.
                Para início de conversa, devo informa-lo de que a psicanálise é um tipo de feitiçaria, e, a se acreditar na opinião de William R. Fairbaim, psicanalista que todo mundo respeita, a função do terapeuta é exorcizar demônios. O paciente, então, é alguém que está possuído por um poder estranho. O que varia não é a doença, mas a intensidade da febre.
                Casos como o seu não raros e ocupam um lugar destacado na literatura. Há de se levantar a hipótese de que todo mundo é louco por dentro. O que não é de todo mau, tanto assim Fernando Pessoa dava graças a Deus por ser louco. Loucura e criatividade moram em quartos vizinhos...
                Nos tempos em que eu era feiticeiro, estava atendendo uma paciente que disse:
                 - É, eu tenho ideia fraca...
Em tom de brincadeira, interferi:
                - Alto lá! Nesta sala somente eu tenho ideias fracas...
Ela ficou espantada e não entendeu. Aí expliquei:
                - Eu penso as mesmas loucuras que você pensa...
                Levantei-me e a chamei para ver o quadro de hieronymus Bosch O jardim das delícias. É uma loucura completa. De onde Bosch tirou aquelas imagens e cenas medonhas? De dentro da própria cabeça. Quer dizer: a cabeça de Bosch era um hospício, morada de loucuras. Mas ele não era louco. Era um artista, pintor. Ele não era louco porque suas ideias eram “fracas”. Ele sabia que não eram verdade. Não eram coisas. Eram criações de sua imaginação. Só existiam na cabeça dele. Agora, se ele pensasse que aquelas imagens e cenas eram realidade, seria um louco varrido. Seu lugar seria o hospício. Em vez disso, seu lugar é o Museu do Prado.
                - Eu penso as mesmas coisas estranhas que você – continuei. – Mas sei que são  só pensamentos, nuvens brancas levadas por uma brisa. Eu mando neles. E com eles faço literatura. Mas seus pensamentos são fortes. As nuvens brancas se transformaram em nuvens negras, e chove, com trovoes e relâmpagos, e você fica toda molhada. Você não é dona deles. Eles mandam em você. Você fica “possuída” por eles...
                Sua descrição da metamorfose pela qual você passa me fez lembrar aquele personagem de um seriado, o Hulk. Normalmente homem simpático e franzino, de repente, quando provocado, ele se transformava num outro, um gigante. Ninguém diria que se tratava da mesma pessoa. Os olhos ficavam estranhos, vidrados, o corpo inchava com músculos descomunais, a pele verdejava, as roupas se rasgavam e ele ficava possuído por uma força e uma fúria incontroláveis. Ainda bem que não é isso que acontece com você, pois, se fosse, sua despesa com o alfaiate seria enorme...
                Tudo acontece repentinamente. O conselho de contar até dez não serve para nada. Antes de começar a contagem, você já está possuído. Tudo em você fica diferente, e os outros o olham com espanto. Mas esse outro em que você se transformou nem liga. Não há palavra que o segure. É como se fosse uma ejaculação de fúria. Aí, passado o surto, o Outro deixa a cena. Some. E você volta, coberto de vergonha, para o corpo de onde o Outro o havia expulsado. É hora de tentar consertar os estragos.
                Você sabe pedir desculpas. Isso é uma virtude. Mas  também sabe que há coisas que não podem ser consertadas. Pode ser que a pessoa magoada pelo Hulk o desculpe, mas é impossível que ela se esqueça do que ela viu. Ela viu o Outro que mora em você e de que ninguém gosta. Nem mesmo você.
                Seu horror é triplo. Primeiro, o horror por aquilo que o Outro, com a sua cara, faz.
                Segundo, o horror de que os outros o tenham visto daquele jeito monstruoso. Você deve conhecer um brinquedinho, não sei o nome em português. Em inglês é Jack-in-box. É um cubo de metal com uma manivela. O cubo metálico é bonitinho por fora. Aí, a gente vai rodando a manivela e, de repente, a tampa se abre e de dentro do cubo salta uma cabeça grotesca que nos dá um susto. Vendo o cubo fechado, ninguém suspeitaria da cabeça assustadora que está dentro dele. Pois você é parecido com o Jack-in-the-box. Todo mundo fica com medo de rodar a manivela.
                Terceiro, o simples horror de que more em você um hóspede desconhecido que está alem do seu controle racional. Se conselhos racionais valessem alguma coisa, eu lhe daria vários, e até poderia escrever um livro de autoajuda sobre o assunto. Mas, quando o hóspede desconhecido entra em cena, já é tarde demais para fazer qualquer coisa. Até mesmo os anjos da guarda fogem...
                Com base nos meus conhecimentos híbridos de psicanálise e magia, meu diagnóstico é o seguinte: você sofre de uma possessão demoníaca intermitente. Imagino seu sorriso de incredulidade ao ler isso. Como é possível que um homem como o Rubem Alves ainda acredite em demônios? Demônios são fantasias do imaginário religioso...
                De fato, demônios são fantasias do imaginário religioso. As religiões os pintaram como seres repulsivos, com cara de bode, chifres na cabeça, peludos, com rabo, masculinos, genitais em forquilha para penetrar dois orifícios ao mesmo tempo e especialistas em soltar ventilações sulfúricas malcheirosas pelas ventas e partes inferiores. Invisíveis, vagam pelos espaços vazios à procura de ninhos onde botar seus ovos.
                Escolhida a vitima, eles se aproximam e por meio de truques sedutores tentam entrar na casa onde desejam se aninhar. Se o dono da casa é bobo e acredita na conversa deles, entram, tomam posse do espaço e não saem pacificamente.
                Você já deve ter ouvido falar: “ele ficou fora de si”. Se ficou fora de si, quem é que ficou dentro de si? Só pode ser um Outro que não ele. Então, naquele momento, o corpo já não é posse dele. Está sob controle de um Outro, que faz coisas que ele jamais faria.
                Nos tribunais se usa falar em “privação dos sentidos” para se referir a uma pessoa que não é responsável por aquilo que faz. É a forma forense de se referir ao “ficar fora de si”, enquanto “um outro” fica dentro de si. Isso quer dizer que a própria linguagem dos juízes e advogados reconhecessem como real essa situação em que o corpo fica possuído por uma entidade estranha. Assim, se o meu corpo cometeu um crime sob a condição de “privação dos sentidos”, isto é, enquanto estava possuído por um estranho, eu não o cometi. Não sou culpado, não posso ser condenado.
                Não descarte os demônios com seu sorriso zombeteiro. Pode ser que o nome e as imagens não sirvam mais. Mas  a “coisa” continua a existir com outros nomes. É como um vírus de computador – ele entra sem permissão e faz a maior confusão. Pois assim são os demônios...
                Vírus, demônios, dois nomes diferentes para a mesma coisa. Com uma diferença: é mais fácil se livrar do vírus que dos demônios.

LOBISOMEM

                Um jeito de compreender o que é possessão demoníaca é a lenda do lobisomem. Ela fala de um homem bom e tranquilo dentro do qual mora um lobo. Mas o lobo fica trancado em uma jaula. Aparece vez por outra, quando, por razoes que não se sabe, a jaula se abre e ele sai. A lenda diz que ele sai em noites de lua cheia. Mas acho que não é bem assim. Ele sai – não se sabe quando nem por que. Aí, toma conta do corpo. E o homem bom e tranquilo, ele o tranca na jaula. Livre, ele é só fúria incontrolável. Esgotada sua fúria, retorna à sua morada, dentro da jaula, e o homem bom e tranquilo retorna ao seu lugar. Os dois nunca se encontram. Nem mesmo se conhecem.
                É lenda, mas é verdade. Isso tem um nome na linguagem da psicanálise. É chamado de “núcleo psicótico”. Em linguagem comum: dentro de todo mundo mora um doido. Em alguns, a jaula é fechada a sete chaves e o bicho não sai. Mas, em outros, a fechadura é fraca e ele sai. Os religiosos dão a isso o nome de “possessão demoníaca”. Os evangelhos falam de um homem assim. Era tão forte que nem mesmo as correntes mais grossas conseguiam conte-lo. O ruim da expressão “possessão demoníaca” é que ela sugere que o bicho é um invasor que em de fora. A psicanálise diz, ao contrário, que ele não é um invasor, mas um morador permanente do corpo, parte da gente.
                Aí tomam-se as providencias para eliminar o demônio. Levam o homem a um psicólogo, psicanalista ou psiquiatra, nomes modernos para oficio de exorcista. Mas o exorcista fica perdido, porque o homem que está diante dele é tão manso, tão bom, fala de literatura, de arte, de crianças...
                Ele nada sabe sobre o lobo. Não é ele. É um outro. O lobo está dormindo em sua cela...

TEXTO RETIRADO DO LIVRO "SOBRE DEMÔNIOS E PECADOS" DE RUBEM ALVES, PAGINA 11.

terça-feira, 8 de maio de 2012

DESEJO DE APRENDER...




DO DESEJO DE APRENDER

As crianças gostam de aprender. O que não quer dizer que elas gostem das escolas. As escolas são, frequentemente, lugares onde elas são obrigadas a aprender, sob pena de punições, aquilo que elas não querem aprender. Por isso, elas e nós nos esquecemos rapidamente do que tentaram nos ensinar contra a nossa vontade.
Sabedoria de um velho ditado caipira: “É fácil levar a égua até o meio do ribeirão. O difícil é obrigar a égua a beber a água”. A gente aprende aquilo que deseja aprender. É o desejo que desperta em nós a inteligência. O filósofo Aristóteles disse: “todos os homens têm, naturalmente, o desejo de aprender”. Ele estava errado. Vou corrigi-lo: “Todos os homens, enquanto crianças, têm naturalmente o desejo de aprender”. O que dá às crianças desejo de aprender? Primeiro é a curiosidade. As crianças acham as coisas do mundo muito interessantes e querem saber por que elas são do jeito que são. Pra que serve isso? Pra nada. Apenas pelo prazer: matar a curiosidade. Depois elas querem aprender para adquirir competências. A criança quer aprender a andar de bicicleta, a descascar laranja, a abrir a porta com a chave – para ter o delicioso sentimento: “Eu posso!”. É um sentimento de poder. E, por fim, elas querem aprender a brincar. Controlar a bola, armar quebra-cabeças, jogar damas...
Adultos, continuam vivos em nós os mesmos impulsos que levam as crianças a aprender. A menos que os matemos...

TEXTO RETIRADO DO LIVRO: PENSAMENTOS QUE PENSO QUANDO NÃO ESTOU PENSANDO, DE RUBEM ALVES, PAGINA 82

As razões do amor...



AS RAZÕES DO AMOR-
 RUBEM ALVES


"Os místicos e os apaixonados concordam em que o amor não tem razões. Angelus Silésius, místico medieval, disse que ele é como a rosa : "A rosa não tem"porquês". Ela floresce porque floresce." Drummond repetiu a mesma coisa no seu poema As Sem-Razões do Amor. É possível que ele tenha se inspirado nestes versos mesmo sem nunca os ter lido, pois as coisas do amor circulam com o vento. 


"Eu te amo porque te amo..." - sem razões... "Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo." Meu amor independe do que me fazes. Não cresce do que me dás. Se fosse assim ele flutuaria ao sabor dos teus gestos. Teria razões e explicações. Se um dia teus 
gestos de amante me faltassem, ele morreria como a flor arrancada da terra. "Amor é estado de graça e com amor não se paga." Nada mais falso do que o ditado popular que afirma que "amor com amor se paga". O amor não é regido pela lógica das trocas comerciais. Nada te devo. Nada me deves. Como a rosa que floresce porque floresce, eu te amo porque te amo. 


"Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a 
regulamentos vários... Amor não se troca... Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo..." Drummond tinha de estar apaixonado ao escrever estes versos. Só os apaixonados acreditam que o amor seja assim, tão sem razões. Mas eu, talvez por não estar apaixonado (o que é uma pena...), suspeito que o coração tenha regulamentos e dicionários, e Pascal me apoiaria, pois foi ele quem disse que "o coração tem razões que a própria razão desconhece". Não é que 
faltem razões ao coração, mas que suas razões estão escritas numa língua que desconhecemos. 
Destas razões escritas em língua estranha o próprio Drummond tinha conhecimento, e se perguntava: "Como decifrar pictogramas de há 10 mil anos se nem sei decifrar minha escrita interior? A verdade essencial é o desconhecido que me habita e a cada amanhecer me dá um soco." O amor será isto: um soco que o desconhecido me dá? 


Ao apaixonado a decifração desta língua está proibida, pois se ele a entender, o amor se irá. Como na história de Barba Azul: se a porta proibida for aberta, a felicidade estará perdida. Foi assim que o paraíso se perdeu: quando o amor - frágil bolha de sabão - não contente com sua felicidade inconsciente, se deixou morder pelo desejo de saber. O amor não sabia que sua felicidade só pode existir na ignorância das suas razões. Kierkegaard comentava o absurdo de se pedir aos amantes explicações para o seu amor. A esta pergunta eles só possuem uma resposta: o silêncio. Mas que se lhes peça simplesmente falar sobre o seu amor - sem explicar. E eles falarão por dias, sem parar... Mas - eu já disse - não estou apaixonado. Olho para o amor com olhos de suspeita, curiosos. Quero decifrar sua língua desconhecida. Procuro, ao contrário do Drummond, as cem razões do amor... 


Vou a Santo Agostinho, em busca de sua sabedoria. Releio as Confissões, texto de um velho que meditava sobre o amor sem estar apaixonado. Possivelmente aí se encontre a análise mais penetrante das razões do amor jamais escrita. E me defronto com a pergunta que nenhum apaixonado poderia jamais fazer: "Que é que eu amo quando amo o meu Deus?" Imaginem que um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: "Que é que eu amo quando te amo?" Seria, talvez, o fim de uma estória de amor. Pois esta pergunta revela um segredo que nenhum amante pode suportar: que ao amar a amada o amante está amando uma outra coisa que não é ela. Nas 
palavras de Hermann Hesse, "o que amamos é sempre um símbolo". Daí, conclui ele, a impossibilidade de fixar o seu amor em qualquer coisa sobre a terra..."

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Senhor Bispo...



Dirijo-me a V. Revma, a fim de solicitar esclarecimento sobre um problema tecnológico. Recebi um e-mail de uma mulher que desconheço. Ela o enviou após ter lido um artigo meu sobre o batizado da minha neta Mariana, do qual o celebrante não autorizado fui eu. Disse-me que tem um filhinho e é seu desejo batiza-lo. Mas o sacerdote lhe nega o batismo, sob a alegação de que ela e o pai da criança não são casados na Igreja. A criança, assim, está com a alma em perigo por um pecado que não cometeu.
Sempre pensei que, segundo a teologia da Igreja, o fato de uma mulher ficar grávida, casada ou não casada, é sinal de que Deus deseja a dita gravidez. Pois, se ele não a desejasse, a gravidez não aconteceria. É somente isso que explica a interdição do aborto em qualquer situação, inclusive nos casos em que o feto não tem cérebro. O senhor haverá de convir comigo que existiria uma contradição na mente divina se Deus aprovasse a gravidez e, ao mesmo tempo, ordenasse à instituição que o representa que lhe negasse o batismo.
Imaginemos uma mulher e seu companheiro. Eles muito se amam, mas não são casados na Igreja. Muito embora os textos sagrados digam que Deus é amor, e o apóstolo Paulo tenha dito que o amor é a maior de todas as virtudes, o fato é num estado pecaminoso de concubinato. Ouvi de um padre, numa homilia de casamento, a seguinte afirmação: “Não é o vosso amor que faz o casamento. É o contrato...”. Os companheiros que se amam sem contrato, assim, estão em pecado e impedidos de batizar seu filhinho. Mas aí o pai da criança morre. Agora, graças à morte do marido, a mulher não mais se encontra numa relação pecaminosa. A criança pode então ser batizada. Se o companheiro da mulher que me enviou a carta morrer, o filho dela poderá ser batizado?
De todos os santos, o de minha devoção mais forte é o santo Expedito. Ele tem a palavra “hoje” escrita em sua cruz. Santo Expedito não deia para amanhã. O milagre acontece no mesmo dia. Pois contou-me uma piedosa senhora sobre um milagre de santo Expedito. Uma amiga sua sofria muito nas mãos de um marido cruel. Ela orou a santo Expedito e seu pedido foi atendido no mesmo dia. Perguntei:
- Sofreu um acidente e morreu?
- Não. Ela respondeu. – Ele se enforcou...
Trata-se do primeiro suicídio milagroso de que há registro. Pergunto: seria adequado à mulher que me escreveu apelar para santo Expedito? Quem é que o santo mataria? O marido ou o padre? Se ele me pedisse conselho, eu diria: “mate o padre...”.
Por favor, senhor bispo, instrua pastoralmente seus padres, informando-os de que todas as crianças vão pra o céu, mesmo sem batismo, não importando que seus pais sejam católicos, protestantes, hinduístas, espíritas, umbandistas, do candomblé, budistas, xintoístas, judeus, maometanos, ateus e quantas religiões haja. Dominus vosbicum.

Fraternalmente, Rubem Alves.

TEXTO RETIRADO DO LIVRO: "O DEUS QUE CONHEÇO", RUBEM ALVES, PAGINA 92.

domingo, 6 de maio de 2012

O Grande Mistério...


O grande mistério

Ah! Tanta gente quer saber se acredito em Deus! Mas eu não entendo a pergunta, porque não sei o que elas querem dizer com essa palavra “acreditar”. E se eu respondesse elas receberiam apenas uma mentira, embora eu tivesse falado a verdade.
As palavras são enganosas... Palavras são bolsos, bolsos vazios. À medida que a gente vai vivendo, vai pondo coisas dentro do bolso. O bolso que tem o nome de Deus fica cheio de quinquilharias que catamos pela vida.
Assim, quando falamos sobre Deus, não falamos sobre Deus. Falamos é sobre as coisas que guardamos dentro desse bolso. Então, se eu respondesse “Acredito em Deus”, a outra pessoa se enganaria pensando que dentro do meu bolso eu guardo as mesmas coias que ela guarda no seu. E concluiria mais: que sou uma boa pessoa. Mas, se eu tivesse dito que não acredito em Deus, ela concluiria que não sou uma boa pessoa.
Uma sugestão: vejam o filme “A língua das mariposas”. Ele se passa no fim da Guerra Civil Espanhola, quando o ditador se pôs a matar seus inimigos derrotados. Não importava que nada tivessem feito, que não tivessem disparado um tiro. Eles eram culpados de pensar diferente. Os soldados haviam chegado a uma aldeia e todos os diferentes (eles não iam à missa) estavam sendo presos para o fuzilamento. A aldeia inteira assistia às prisões daqueles que até a véspera tinham sido seus inimigos. O padre sabia e, ao lado dos fuzis, se preparava para a absolvição dos pecados... e a acusação suprema de impiedade que era lançada contra os caminhantes, “dali a pouco cadáveres”, era: “Ateus!” Mas o que importava mesmo era que o generalíssimo Franco acreditava em Deus e era católico de comunhão diária... Muitas pessoas guardam mortes no bolso que tem o nome de Deus.
“Acreditar”, no sentido comum que as religiões dão a essa palavra, refere-se a entidades que ninguém jamais viu, tais como anjos, pecados, santos, milagres, castigos divinos, inferno, céu, purgatório... No meu bolso sagrado, “acreditar” é palavra que não entra. Ele está cheio é de palavras que têm a ver com amor, mesmo que o objeto do meu amor não exista. Lembro-me das palavras de Válery: “Que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?” Muitas coisas que não existem têm poder...
Eu amo a beleza da natureza, da música de um poema. Amo a beleza das palavras de amor que os apaixonados trocam. Uma criança adormecida é, para mim, uma revelação, uma ocasião de espanto. Acho que Bachelard adoraria nos mesmos altares que eu: “A inquietação que temos pela criança”, ele escreveu, “sustenta uma coragem invencível”. Uma criança é um pequeno deus.
Para mim a beleza é sagrada porque, ao experimentá-la, eu me sinto possuído pelo Grande Mistério que nos cerca. Sinto-me como uma aranha que constrói sua teia sobre o abismo. O abismo está à volta de nós, o abismo está dentro de nós. Os fios da minha teia, eu os tiro de dentro de mim, são partes do meu corpo. Teço minha teia com poesia e música.
De Deus só temos a suspeita. A beleza é a sombra de Deus. Sobre ele – ou ela – deve-se calar, muito embora as religiões sejam por demais tagarelas a seu respeito, havendo mesmo algumas que se acreditam possuidoras do monopólio das palavras certas – a que dão o nome de dogmas.
Estou de acordo com Alberto Caeiro:

Pensa em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos.

Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

E de acordo também estou com Walt Whitman:

E à raça humana eu digo:
- Não seja curiosa a respeito de Deus,
Pois eu sou curioso sobre todas as coisas e não sou curioso a respeito de Deus.
(não há palavra capaz de dizer quanto eu me sinto em paz perante Deus e a morte)
Escuto e vejo Deus em todos os objetos,
Embora de Deus mesmo eu não entenda nem um pouquinho.

Já percebi
Que estar com aqueles de quem eu gosto
É quanto basta.


Buber concordaria. Estar junto é divino. Deus mora nos intervalos entre as pessoas que se amam.
Eu nem tenho mais o bolso com o nome Deus. Esse nome se presta a muitas confusões. Muitos bolsos com esse nome estão cheios de escorpiões e vinganças.
Amo a sombra de Deus. Mas ele mesmo nunca vi. Sou um ser humano limitado. Só sou capaz de amar as coias que vejo, ouço, abraço, beijo...
Tenho um bolso com o nome de O Grande Mistério. Mas não sei o que está dentro dele. Por vezes suspeito que é o meu coração.

TEXTO RETIRADO DO LIVRO: “O DEUS QUE CONHEÇO” DE RUBEM ALVES, PAGINA 88.

sábado, 5 de maio de 2012

A praga




A praga

É bom atentar para o que o papa diz. Porta-voz de Deus na terra, ele só pensa pensamentos divinos. Nós, homens tolos, gastamos o tempo pensando sobre coisas sem importância, tais como o efeito estufa e a possibilidade do fim do mundo. O papa vai direto ao que é essencial: “O segundo casamento é uma praga!”
Está certo. O casamento não pertence à ordem abençoada do paraíso. No paraíso não havia casamento. Na Bíblia não há indicação alguma de que as relações amorosas entre Adão e Eva tenham sido precedidas pelo cerimonial a que hoje se dá o nome de casamento – o Criador, celebrante, Adão e Eva nus, de pé, diante de uma assembleia de animais, tudo terminando com as palavras sacramentais: “E eu, Jeová, vos declaro marido e mulher. Aquilo que eu ajuntei os homens não podem separar...”
Os casamentos, o primeiro, o segundo, o terceiro, pertencem à ordem maldita, caída, praguejada, pós-paraíso. Nessa ordem não se pode confiar no amor. Por isso se inventou o casamento, esse contrato de prestação de serviços entre marido e mulher, testemunhado por padrinhos, cuja função é, no caso de algum dos conjugues não cumprir o contrato , obrigatório a cumprir.
Foi um padre que me ensinou isso. Ele celebrava o casamento. E foi isso que disse aos noivos: “O que vos une não é o amor. O que vos uni é o contrato”. Aprendi então que o casamento não é uma celebração de amor. É o estabelecimento de direitos e deveres. Até as relações sexuais são obrigações que devem ser cumpridas.
Agora imaginem um homem e uma mulher que muito se amam: são ternos, amigos, fazem amor, geram filhos. Mas, segundo a Igreja, estão em estado de pecado: falta ao se relacionamento o selo eclesiástico legitimador. Ele, divorciado da antiga esposa, não pode se casar de novo porque a igreja proíbe a praga do segundo casamento. Aí os dois, já no fim da vida, são obrigados a se separar para participar da eucaristia: cada um para um lado, adeus aos gestos de ternura... agora está tudo nos conformes. Porque Deus não enxerga o amor. Ele só vê o selo eclesial.
O papa está certo. O segundo casamento é uma praga. Eu, como já disse, acho que todos são uma praga, por não ser da ordem paradisíaca, mas da ordem da maldição. O símbolo da maldição está na palavra “conjúgio” (casamento), do latin con = junto e jugum = canga. Canga, aquela peça pesada de madeira  que une dois bois. Eles não querem estar juntos. Mas a canga os obriga, sob pena do ferrão...
Porque o segundo casamento é uma praga? Porque, para havê-lo, é preciso que o primeiro seja anulado pelo divórcio. Mas, se a Igreja admitir a anulação do primeiro casamento, terá de admitir também que o sacramento que o realizou não é aquilo que ela afirma ser: um ato realizado pelo próprio Deus.
Permitir o divórcio equivale a dizer que o sacramento é uma balela. Donde a Igreja é uma balela... Com o divórcio, ela seria rebaixada de seu lugar infalível e passaria a ser apenas mais uma instituição falível entre outras. A Igreja não admite o divórcio não por amor à família. Mas para manter-se divina...
A Igreja, sábia, tratou de livrar seus funcionários da maldição do amor. Proibiu-os de se casar. Livres da maldição do casamento, os sacerdotes têm a suprema felicidade de noites de solidão, sem conversas, sem abraços nem beijos. Estão livres da praga...

TEXTO RETIRADO DO LIVRO: “O DEUS QUE CONHEÇO”, DE RUBEM ALVES, PAGINA 85.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Seu destino é o sucesso...




Seu destino é o sucesso...

O Antigo Testamento é cortado por uma briga entre dois grupos: os profetas e os falsos profetas. Os profetas viam as feridas e espremiam seus pus fedorento. Os falsos profetas viam as feridas, mas sabiam que os feridentos não gostavam de mostra-las. Assim em vez de espremer as feridas, besuntavam-nas com mel perfumado e diziam: “Está tudo bem!” O povo amava os falsos profetas e odiava os profetas.
Os falsos profetas continuam em pleno exercício. Escrevem livros, anunciam as ilusões do coração como se fossem verdades e estão sempre na lista dos Best-sellers.
Um deles me disse “o meu destino é ser vitorioso”. Que bom! Isso está predeterminado desde antes do meu nascimento. Nasci de uma vitória numa maratona –mais de duzentos milhões de espermatozoides correram. Um só foi vitorioso: aquele de que nasci! E essa verdade vale para todos, os parias, os refugiados, os marginais, os mendigos, os criminosos, os escravos, porque eles, como eu nasceram da vitória de um espermatozoide.
Você é insubstituível! Sou? Isso faz bem ao meu coração!...
Aí me lembro das palavras de um profeta de verdade, Fernando Pessoa, que nunca foi Best-seller:
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para os outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

Um outro anunciava: “O seu lugar é o pódio”. Que maravilhosa mensagem a ser transmitida a todos os atletas das Olimpíadas! Cada um deles está destinado ao pódio! Pódios para todos! Todas as competições deverão terminar empatadas!
A capa do livro diz que não devo desistir dos meus sonhos. Mas eu já sonhei tanta coisa boba e impossível! Sonhei que seria um pianista e trabalhei muito para sê-lo... mas não adianta que gato sonhe voar. Um gato jamais será pássaro. Não seria mais sábio que ele sonhasse com ratos gordos?
Os terroristas não desistem dos seus sonhos. Sonham que vão se explodir para matar os inimigos. E se explodem, realizando seu sonho...
Outdoor religioso dizia: “Você nasceu para vencer”. A religião garante sucesso. O empresário que tem Jesus no coração sempre vence. Jesus no coração é seguro contra falência... Jesus morreu na cruz para nos tornar empresários bem-sucedidos. E, se você não é um vitorioso, saiba que a culpa é sua: não tem Jesus no coração... O que é vencer na vida? Mike Tyson foi um vitorioso. Eu amo aqueles que, por amor a verdade, aceitam a derrota.
Os religiosos invocam Deus para realizar seus desejos. Agora quem faz milagres é a literatura de autoajuda. A nova religião.
O Segredo é simples. No universo tudo acontece pelo o poder da atração. É a lei da física. Tudo é imã, tudo atrai e é atraído. Nós também somos ímãs. O que temos é aquilo que atraímos. Atraímos dinheiro ou pobreza, saúde ou câncer, amor ou solidão.
A questão é atrair as coisas certas. O pensamento positivo faz atrair as coisas certas. E o milagre acontece! Como atrair as coisas certas? Compre o livro O segredo que você saberá. É mesmo possível que você já o tenha comprado e já esteja a caminho do sucesso...

TEXTO RETIRADO DO LIVRO:  O DEUS QUE CONHEÇO, DE RUBEM ALVES, PAGINA 86

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Será que vou rezar?

Para aqueles que pensam que sabem comemorar, um evento, principalmente se for o Natal, talvez seria bom que pudéssemos avaliar isso antes das próximas comemorações que estão para chegar.. 






Será que vou rezar?

Sou um admirador de Gandhi. Cheguei mesmo a escrever um livro sobre ele. Estou planejando convocar os amigos para uma homenagem póstuma a esse grande líder pacifista e vegetariano. Pensei que uma boa maneira de homenageá-lo seria um evento numa churrascaria – todo mundo gosta de churrasco – , um delicado rodízio com carnes variadas, picanhas, filés, costelas, cupins, fraldinhas, linguiças, salsichas, paios, galetos e chope. O grande líder merece ser lembrado e festejado com muita comilança e barriga cheia!
Eu não fiquei doido. O que fiz foi usar de um artifício lógico chamado reductio ad absurdum, que consiste no seguinte: para provar a verdade de uma proposição, eu mostro os absurdos que se seguiriam se o seu contrário, e não ela, fosse verdadeiro. Demonstrei o absurdo de celebrar um líder vegetariano de hábitos frugais com um churrasco.
Uma homenagem tem de estar em harmonia com a pessoa homenageada para torná-la presente entre aqueles que a celebram. Uma refeição, sim. Mas pouca comida. Comer pouco é uma forma de demonstrar nosso respeito pela natureza. Alface, cenoura, azeitonas, Paes – e água.
Escrevo com antecedência, hoje, 27 de novembro,  quase um mês antes, para que vocês celebrem direito. A celebração há de trazer de novo à memória o evento celebrado.
É uma cena: numa estrebaria, uma criancinha acaba de nascer. Sua mãe a colocou numa manjedoura, cocho onde se põe comida para animais. As vacas mastigam sem parar, ruminando. Ouve-se um galo que canta e os violinos dos grilos – música suave ... No meio dos animais tudo é tranquilo. Os campos estão cobertos de vagalumes que piscam chamados amor. E no céu brilha uma estrela diferente. Que estará anunciando suas cores? O nascimento de um Deus?
É. O nascimento de um Deus. Deus é uma criança. O nascimento do Deus criança só pode ser celebrado com coisas mansas. Mansas e pobres. Os pobres, em seu despojamento, devem poder celebrar. Não é preciso muito.
Um poema se lê. Alberto Caeiro escreveu um poema que faria José e Maria, os pais do menininho, rir de felicidade:

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino
[...]
Tinha fugido do céu.


Longo, merece ser lido inteiro, bem devagar...
Uma canção que se canta. Das cantigas. Tem de ser das antigas. Para convocar a saudade. É a saudade que traz para dentro da sala a cena que aconteceu longe. Sem saudade o milagre não acontece.
Algo para comer. O que é que José e Maria teriam comido naquela noite? Um pedaço de queijo,nozes, vinho, pão velho, uma caneca de leite tirado na hora. E deram graças a Deus.
E é preciso que se fale em voz baixa. Para não acordar a criança.
Naquela mesma noite, havia uma outra celebração no palácio de Herodes, o cruel. Ele tinha medo das crianças e mataria todas se assim o desejasse. A mesa do banquete estava posta: leitões assados, linguiças, bolos e muito vinho... os músicos tocavam, as dançarinas rodopiavam. Grande era a orgia.
É. Cada um celebra o que escolhe. Acho que vou fazer uma sopa de fubá, que tomarei com pimenta e torradas. E lerei poemas e ouvirei música. E farei silêncio quando chegar a meia-noite, e quem sabe rezarei.

TEXTO RETIRADO DO LIVRO “O DEUS QUE CONHEÇO” DE RUBEM ALVES. PAGINA 79.