quarta-feira, 20 de junho de 2012

QUERO VIVER MUITOS ANOS...



“Quero viver enquanto estiver acesa, em mim, a capacidade de me comover diante da beleza...”

Sim, eu quero viver muitos anos mais. Mas não a qualquer preço. Quero viver enquanto estiver acesa, em mim, a capacidade de me comover diante da beleza.
A comoção diante da beleza tem o nome de “alegria”, mesmo quando as lágrimas escorrem pela face. A alegria e a tristeza são boas amigas. Assim o disse a minha amiga Adélia: “A poesia é tão triste. O que é bonito enche os olhos de lágrimas. Por prazer da tristeza eu vivo alegre”.
Essa capacidade de sentir alegria é a essência da vida. Quase que disse “vida humana”, mas parei a tempo. Pões é muita presunção de nossa parte pensar que somente nós recebemos essa graça. Aquela farra de pulos, correria, mordidas e gestos de faz-de-conta em que se envolvem minha velha Doberman (nunca tive cachorro mais gentil!) e o Cocker novinha, nenê, aquilo é pura alegria. E o vôo do beija-flor, flutuando parado no ar, gozando a água fria que sai do esguicho – também isso é alegria. Lembrei-me de um místico que orava assim: “Ó Deus! Que aprendamos que todas as criaturas vivas não vivem só para nós, que elas vivem para si mesmas e para Ti. E que elas amam a doçura da vida tanto quanto nós”.
Na alegria, a natureza atinge seu ponto mais alto: ela se torna divina. Quem tem alegria tem Deus. Nada existe, no universo, que seja maior que esse dom . o universo inteiro, com todas as suas galáxias: somos maiores e mais belos do que ele, porque nós podemos nos alegrar diante da beleza dele, enquanto ele mesmo não se alegra com coisa alguma.
Quero viver muito, mas o pensamento da morte não me dá medo. Me dá tristeza. Este mundo é tão bom. Não quero ser expulso do campo no meio do jogo. Não quero morrer com fome. Há tantos queijos esperando ser comidos. Quando o corpo não tiver mais fome, quando só existirem o enfado e o cansaço, então quererei morrer. Saberei que a vida se foi, a despeito dos sinais biológicos externos que parecem dizer o contrário. De fato, não há razoes para o medo. Porque só há duas possibilidades. Nada existe depois da morte. Neste caso, eu serei simplesmente reconduzido ao lugar onde estive sempre, desde que o universo foi criado. Não me lembro de ter sentido qualquer ansiedade durante essa longa espera. Meu nascimento foi um surgir do nada. Se isso aconteceu uma vez, é possível que aconteça outras. O milagre pode voltar a se repetir algum dia. Assim esperava Alberto Caeiro, orando ao Menino Jesus: “... E dá-me sonhos teus para eu brincar/ Até que nasça qualquer dia / Que tu sabes qual é...”.
Se, ao contrário, a morte for a passagem para outro espaço, como afirmam as pessoas religiosas, também não há razoes para temer. Deus é amor e, ao contrário do que reza a teologia cristã, ele não tem vinganças a realizar, mesmo que não acreditemos nele. E nem poderia ser de outra forma: eu jamais me vingaria dos meus filhos. Como poderia o “Pai Nosso” fazê-lo?
Mas eu tenho medo de morrer. Pode ser doloroso.
O que eu espero: não quero sentir dor. Para isso, há todas as maravilhosas drogas da ciência, as divinas morfinas, dolantinas e similares. Quero também estar junto das cosias e das pessoas que me dão alegria.
Quero meu cachorro – e se algum médico ou enfermeira alegar, em nome da ciência, que cachorros podem transmitir enfermidades, eu os mandarei para aquele lugar. Os que estão morrendo tornaram-se invulneráveis. Eles estão alem das bactérias, infecções e contradições. Lembro-me de um velhinho, meu amigo, que no leito de morte disse à filha que queria comer um pastel. “Mas papai”, ela argumentou, “fritura faz mal...”
Ela não sabia que os morituri estão além do que faz bem e do que faz mal.
Quero também ter a felicidade de poder conversar com meus amigos sobre a minha morte. Um dos grandes sofrimentos dos que estão morrendo é perceber que não há ninguém que os acompanhe até a beira do abismo. Eles falam sobre a morte e os outros logo desconversam. “Bobagem, você logo estará bom...” E eles então se calam, mergulham no silêncio e na solidão, para não incomodar os vivos. Só lhes resta caminhar sozinhos para o fim. Seria tão mais bonita uma conversa assim: “Ah, vamos sentir muito sua falta. Pode ficar tranquilo: cuidarei do seu jardim. As coisas que você amou, depois da sua partida, vão se transformar em sacramentos: sinais da sua ausência. Você estará sempre nelas...” Aí os dois se dariam as mãos e chorariam pela tristeza da partida e pela alegria de uma amizade assim tão sincera.
Alguns há que pensam que a vida é coisa biológica, o pulsar do coração, uma onda cerebral elétrica. Não sabem que, depois que a alegria se foi, o corpo é só um ataúde. E aí os teólogos e médicos, invocando a autoridade da natureza, dizem que a vida física deve ser preservada a todo custo... Mas a vida humana não é coisa da natureza. Ela só existe enquanto houver a capacidade para sentir a beleza e a alegria.
E assim, apoiados nessa doutrina cruel, submetem a torturas insuportáveis o corpo que deseja partir – cortam-no, perfuram-no, ligam-no a maquinas, enfiam-lhe tubos e fios para que a maquina continue a funcionar, mesmo diante de suas súplicas: “Por favor, deixem-me partir!” E é este o meu desejo final: que respeitem meu corpo, quando disser: “Chegou a hora da despedida”. Amarei muito aqueles que me deixarem ir. Como eu disse: amo a vida e desejo viver muitos anos mais, como Picasso, Cora Coralina, Hokusai, Zorba... Mas só quero viver enquanto estiver acesa a chama da alegria.

TEXTO RETIRADO DO LIVRO : NAVEGANDO. DE RUBEM ALVES. PAGINA 25

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