quarta-feira, 2 de maio de 2012

Será que vou rezar?

Para aqueles que pensam que sabem comemorar, um evento, principalmente se for o Natal, talvez seria bom que pudéssemos avaliar isso antes das próximas comemorações que estão para chegar.. 






Será que vou rezar?

Sou um admirador de Gandhi. Cheguei mesmo a escrever um livro sobre ele. Estou planejando convocar os amigos para uma homenagem póstuma a esse grande líder pacifista e vegetariano. Pensei que uma boa maneira de homenageá-lo seria um evento numa churrascaria – todo mundo gosta de churrasco – , um delicado rodízio com carnes variadas, picanhas, filés, costelas, cupins, fraldinhas, linguiças, salsichas, paios, galetos e chope. O grande líder merece ser lembrado e festejado com muita comilança e barriga cheia!
Eu não fiquei doido. O que fiz foi usar de um artifício lógico chamado reductio ad absurdum, que consiste no seguinte: para provar a verdade de uma proposição, eu mostro os absurdos que se seguiriam se o seu contrário, e não ela, fosse verdadeiro. Demonstrei o absurdo de celebrar um líder vegetariano de hábitos frugais com um churrasco.
Uma homenagem tem de estar em harmonia com a pessoa homenageada para torná-la presente entre aqueles que a celebram. Uma refeição, sim. Mas pouca comida. Comer pouco é uma forma de demonstrar nosso respeito pela natureza. Alface, cenoura, azeitonas, Paes – e água.
Escrevo com antecedência, hoje, 27 de novembro,  quase um mês antes, para que vocês celebrem direito. A celebração há de trazer de novo à memória o evento celebrado.
É uma cena: numa estrebaria, uma criancinha acaba de nascer. Sua mãe a colocou numa manjedoura, cocho onde se põe comida para animais. As vacas mastigam sem parar, ruminando. Ouve-se um galo que canta e os violinos dos grilos – música suave ... No meio dos animais tudo é tranquilo. Os campos estão cobertos de vagalumes que piscam chamados amor. E no céu brilha uma estrela diferente. Que estará anunciando suas cores? O nascimento de um Deus?
É. O nascimento de um Deus. Deus é uma criança. O nascimento do Deus criança só pode ser celebrado com coisas mansas. Mansas e pobres. Os pobres, em seu despojamento, devem poder celebrar. Não é preciso muito.
Um poema se lê. Alberto Caeiro escreveu um poema que faria José e Maria, os pais do menininho, rir de felicidade:

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino
[...]
Tinha fugido do céu.


Longo, merece ser lido inteiro, bem devagar...
Uma canção que se canta. Das cantigas. Tem de ser das antigas. Para convocar a saudade. É a saudade que traz para dentro da sala a cena que aconteceu longe. Sem saudade o milagre não acontece.
Algo para comer. O que é que José e Maria teriam comido naquela noite? Um pedaço de queijo,nozes, vinho, pão velho, uma caneca de leite tirado na hora. E deram graças a Deus.
E é preciso que se fale em voz baixa. Para não acordar a criança.
Naquela mesma noite, havia uma outra celebração no palácio de Herodes, o cruel. Ele tinha medo das crianças e mataria todas se assim o desejasse. A mesa do banquete estava posta: leitões assados, linguiças, bolos e muito vinho... os músicos tocavam, as dançarinas rodopiavam. Grande era a orgia.
É. Cada um celebra o que escolhe. Acho que vou fazer uma sopa de fubá, que tomarei com pimenta e torradas. E lerei poemas e ouvirei música. E farei silêncio quando chegar a meia-noite, e quem sabe rezarei.

TEXTO RETIRADO DO LIVRO “O DEUS QUE CONHEÇO” DE RUBEM ALVES. PAGINA 79.

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