Para aqueles que pensam que sabem comemorar, um evento, principalmente se for o Natal, talvez seria bom que pudéssemos avaliar isso antes das próximas comemorações que estão para chegar..
Será que vou rezar?
Sou um admirador de Gandhi. Cheguei mesmo a escrever um
livro sobre ele. Estou planejando convocar os amigos para uma homenagem póstuma
a esse grande líder pacifista e vegetariano. Pensei que uma boa maneira de
homenageá-lo seria um evento numa churrascaria – todo mundo gosta de churrasco –
, um delicado rodízio com carnes variadas, picanhas, filés, costelas, cupins,
fraldinhas, linguiças, salsichas, paios, galetos e chope. O grande líder merece
ser lembrado e festejado com muita comilança e barriga cheia!
Eu não fiquei doido. O que fiz foi usar de um artifício lógico
chamado reductio ad absurdum, que consiste no seguinte: para provar a verdade
de uma proposição, eu mostro os absurdos que se seguiriam se o seu contrário, e
não ela, fosse verdadeiro. Demonstrei o absurdo de celebrar um líder vegetariano
de hábitos frugais com um churrasco.
Uma homenagem tem de estar em harmonia com a pessoa
homenageada para torná-la presente entre aqueles que a celebram. Uma refeição,
sim. Mas pouca comida. Comer pouco é uma forma de demonstrar nosso respeito
pela natureza. Alface, cenoura, azeitonas, Paes – e água.
Escrevo com antecedência, hoje, 27 de novembro, quase um mês antes, para que vocês celebrem
direito. A celebração há de trazer de novo à memória o evento celebrado.
É uma cena: numa estrebaria, uma criancinha acaba de nascer.
Sua mãe a colocou numa manjedoura, cocho onde se põe comida para animais. As vacas
mastigam sem parar, ruminando. Ouve-se um galo que canta e os violinos dos
grilos – música suave ... No meio dos animais tudo é tranquilo. Os campos estão
cobertos de vagalumes que piscam chamados amor. E no céu brilha uma estrela
diferente. Que estará anunciando suas cores? O nascimento de um Deus?
É. O nascimento de um Deus. Deus é uma criança. O nascimento
do Deus criança só pode ser celebrado com coisas mansas. Mansas e pobres. Os pobres,
em seu despojamento, devem poder celebrar. Não é preciso muito.
Um poema se lê. Alberto Caeiro escreveu um poema que faria
José e Maria, os pais do menininho, rir de felicidade:
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino
[...]
Tinha fugido do céu.
Longo, merece ser lido inteiro, bem devagar...
Uma canção que se canta. Das cantigas. Tem de ser das
antigas. Para convocar a saudade. É a saudade que traz para dentro da sala a
cena que aconteceu longe. Sem saudade o milagre não acontece.
Algo para comer. O que é que José e Maria teriam comido
naquela noite? Um pedaço de queijo,nozes, vinho, pão velho, uma caneca de leite
tirado na hora. E deram graças a Deus.
E é preciso que se fale em voz baixa. Para não acordar a
criança.
Naquela mesma noite, havia uma outra celebração no palácio de
Herodes, o cruel. Ele tinha medo das crianças e mataria todas se assim o
desejasse. A mesa do banquete estava posta: leitões assados, linguiças, bolos e
muito vinho... os músicos tocavam, as dançarinas rodopiavam. Grande era a
orgia.
É. Cada um celebra o que escolhe. Acho que vou fazer uma
sopa de fubá, que tomarei com pimenta e torradas. E lerei poemas e ouvirei
música. E farei silêncio quando chegar a meia-noite, e quem sabe rezarei.
TEXTO RETIRADO DO LIVRO “O DEUS QUE CONHEÇO” DE RUBEM ALVES.
PAGINA 79.
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