“O amor é dado de graça,
É semeado no vento, na cachoeira,
No eclipe...”
(Carlos Drummond de Andrade)
O meu fascínio pelos ritos me faz suspeitar que, numa outra vida, é possível que eu tenha sido um sacerdote ou um feiticeiro. Hoje, pouca gente sabe o que são. Um rito acontece quando um poema, achando que as palavras não bastam, encarna-se em gestos, em comida e bebida, em cores e perfumes, em música e dança. O rito é um poema transformado em festa! Escrevo hoje para os que casam, por meio de que, fascinados por um rito, se esqueçam do outro... Porque, caso não saibam, é desse outro, esquecido, que o casamento depende.
O primeiro rito, sobre que todos sabem, e para o qual se fazem convites, é feito com pedras, ferro e cimento.
Há um outro rito, secreto, que se faz com o vôo das aves, com água, brisa, espuma e bolhas de sabão.
O primeiro rito nasceu de uma mistura de alegria e tristeza. Viram o vôo do pássaro, ficaram alegres. Mas logo o pássaro se foi e ficaram tristes. Não lhes bastava que a alegria fosse infinita enquanto durasse. Queriam que ela fosse eterna. E disseram: “Queremos o vôo do pássaro, eternamente”. E que coisa melhor existe para conter o vôo do pássaro que uma gaiola? E assim fizeram. Engaiolaram o pássaro e chamaram os mágicos, ordenando-lhes que dissessem as palavras do bruxedo: “Para sempre, até a morte os separe”.
A definição mais precisa desse rito, eu a ouvi da boca de um sacerdote. “Não é o amor que faz um casamento”, ele afirmou. “São as promessas”.
Assustei-me. Sabia que assim, era no civil, casamento-contrato, rito frio da sociedade, para definir os deveres (sobre os prazeres se faz silêncio) e a partilha dos bens e dos males. Sociedade é cois sólida. Precisa de pedra, ferro e cimento. Garantias. Testemunhas. Documentos. O futuro há de ser da forma como o presente o desenhou. Para isso, os contratos. E a substância do contrato são as promessas. Sim. Ele estava certo. “Não é o amor que faz o casamento. São as promessas.”.
Promessas são as palavras que engaiolam o futuro. Por isso elas se fazem acompanhar sempre de testemunhas. Se o pássaro engaiolado, em algum momento do futuro, mudar de sentimento e de ideia e resolver voar, as testemunhas estão lá para reafirmar as promessas feitas no passado. O dito e contratado não pode ser mudado.
Muitas são as promessas que os noivos podem fazer: prometo dividir os meus bens, prometo não maltrata-la, prometo não humilha-lo, prometo protegê-la, prometo cuidar de você na doença. Atos exteriores podem ser prometidos.
Assim se fazem os casamentos, com pedra, ferro, cimento e amor. Mas as coias do amor não podem ser prometidas. Não posso prometer que, pelo resto da minha vida, sorrirei de alegria ao ouvir seu nome. Não posso prometer que, pelo resto de minha vida, sentirei saudades na sua ausência.
Sentimentos não podem ser prometidos. Não podem ser prometidos porque não dependem da nossa vontade. Sua existência é efêmera. Só existem no momento. Como o vôo dos pássaros, o sopro do vento, as cores do crepúsculo. Esse é um rito de adultos, porque somente os adultos desejam que o futuro seja igual ao presente. A sua gravidade, a sua seriedade, os passo cadenciados, processionais, as suas roupas, as suas máscaras, as palavras sagradas, definitivas, para sempre, o que Deus ajunta os homens não podem separar, a exaltação dos deveres: tudo dá testemunho de que esse é um ritual adulto.
O outro ritual se faz com o vôo das aves, com água, espuma e bolhas de sabão. Secreto, para ele não há convites. Secreto foi o casamento de Abelardo e Heloisa, o mais belo amor jamais vivido (proibido).
Não há convites, nem lugar certo, nem hora marcada: simplesmente acontece. “Amor é dado de graça,/ é semeado no vento, / na cachoeira, no eclipe...” (Drummond). Não precisa de altares: sempre que ele acontece o arco-íris aparece: a promessa de Deus, porque Deus é amor. Pode ser sombra de uma árvores, um carro, uma cozinha, um banco de jardim, um vagão de trem, um aeroporto, uma mesa de bar, uma caminhada ao luar...
Não há promessas para amarrar o futuro. Há confissões de amor para celebrar o presente. “Como és formosa, querida minha, como és formosa! Há mel debaixo da tua língua”, “ O teu rosto, meu amado, é um canteiro de bálsamo e os teus lábios são lírios...” (Bíblia Sagrada); “Eu sei que vou te amar/ por toda a minha vida eu vou te amar/ em cada despedida eu vou te amar / desesperadamente eu sei que vou te amar...” (Vinicius); “Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo tua matéria, fauna e flora... Te amo com uma memória imperecível” (Adélia Prado).
E os convidados, muitos poucos, vestem-se como crianças: pés descalços, balões coloridos nas mãos: eles sabem que o amor fica somente se permaneceremos crianças, eternamente...
“Ego, conjugo vobis in matrimonium”, diz um velho com rosto de criança.
“Para vós que invoco os prazeres que voam nos ventos e as alegrias que moram nas cores: beleza, harmonia, encantamento, magia,mistério, poesia: que essas potencias divinas lhe façam companhia.
Que o sorriso de um seja, para o outro, festa, fartura, mel, peixe assado no fogo, coco maduro na praia, onda salgada do mar...
Que as palavras do outro sejam tecido branco, vestido transparente de alegria, a ser despido por sutil encantamento.
E que no final das contas e no começo dos contos, em nome do nome não-dito, bem-dito, em nome de todos os nomes ausentes e nostalgias presentes, de ágape e filia, amizade e amor, em nome do nome sagrado, do pão partido e do vinho bebido, sejam felizes os dois, hoje, amanha e depois...”
TEXTO RETIRADO DO LIVRO: “NAVEGANDO”, DE RUBEM ALVES, PAGINA 45.
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