Em louvor à inutilidade
“As crianças, do jeito como saem das mãos de Deus, são brinquedos inúteis, não servem para coisa alguma...”
Brinquedo não serve para nada. Objeto inútil. Útil é uma coisa que pode ser usada para se fazer algo. Por exemplo, uma panela.
Ela é útil. Com ela se fazem feijoadas, moquecas e sopas. Uma escada também é útil: pode ser usada para se subir no telhado, para apanhar jabuticabas nos galhos altos, para trocar uma lâmpada. Um barco é útil: pode ser usado para atravessar um rio. Uteis são o palito, a vassoura, o canivete, o pente, a camisinha, a aspirina, o lápis, a bicicleta, o computador e os meus dedos que digitam as palavras que penso.
Convidaram-me para dar uma palestra para pessoas de terceira idade. Comecei minha fala de forma solene: “Então os senhores e as senhoras chegaram finalmente a essa idade maravilhosa em que podem se dar ao luxo de ser totalmente inúteis!” Pensaram que fosse xingamento, ofensa. E trataram, cada um, de me explicar sua utilidade. E exigiram ser colocados na caixa das coisas uteis, onde estavam a vassoura, o papel higiênico e o serrote. Mas eu só queria que eles fossem colocados no mesmo baú onde estavam os brinquedos.
Lá em Minas era assim que se valorizava o marido, dizendo que ele morava na caixa de coias úteis: “ O Onofre é assim caladão, desengonçado e sem jeito. Mas marido melhor não pode haver. É sem defeito. Bom demais: não deixa faltar nada em casa...”
As mães, sagazes, sabiam que um casamento duradouro depende da utilidade das esposas. Como a expressão “esposa útil” não fica bem, substituíram-na por “esposa prendada”. Sabedoria das mães sagazes: esposa prendada, casamento duradouro, mãe viúva abrigada. Preparavam suas filhas para o casamento transformando-as em ferramentas-complementos de panelas, agulhas e vassouras. Cozinhar, varrer, costurar: esses erma os saberes necessários à formação de uma mulher útil. Nunca ouvi falar, não conheço, ignoro qualquer esforço no sentido de desenvolver nos homens e nas mulheres os seus potencias de brinquedo. Afinal de contas, brinquedo é coisa inútil.
O que se procura é um cavalo (ou égua) marchador, que não se espante com mau tempo, que fique amarrado no pau espantando moscas com o rabo sem relinchar: muito mais útil que um cavalo selvagem, lindo de se espiar, maravilhoso de se sonhar, mas impossível de se montar. Simetricamente, uma mulher submissa, caseira e trabalhadora vale mais que uma mulher com ideias próprias que voa por lugares não sabidos. Há um capitulo nas Sagradas Escrituras, no livro de Provérbios (31: 10-31), onde se encontra a mais fantástica ficção sobre a mulher virtuosa que eu jamais vi. Aquilo não é uma mulher; é uma máquina. Mulher faz-tudo, de um marido faz-nada. Porque não sobra nada para ele fazer. A descrição é tão doida que a única explicação que tenho para tal colar impossível de virtudes é o que o autor devia estar fazendo uma brincadeira, gozação amorosa com sua mulherzinha que não era nada daquilo, mas que tinha virtudes de brinquedo que ele adorava.
Quando o valor das coias está na utilidade, no momento em que deixam de ser uteis são jogadas fora. Uma lâmpada queimada, uma caneta Bic vazia, um saquinho de chá usado: vão todos para o lixo. Na hora de despedir os empregos é sempre a lei da utilidade que funciona. Cozinheira que cozinha bem fica no emprego e tem aumento. Cozinheira que põe sal demais no feijão e deixa queimar o arroz é despedia. Esta é a lei da utilidade: o menos útil é jogado fora para que o mais útil tome o seu lugar. Minha máquina de escrever, faz mais de um ano que não toco nela. Isso vale para as pessoas. É a lei da selva, a sobrevivência do mais apto.
Muitas pessoas chegam mesmo a colocar Deus nesse rol de utilidades, ao lado desses objetos-ferramentas. Claro, a ferramenta mais potente, capaz de fazer tudo o que as outras não fazem: encontrar chave perdida, curar câncer, fazer o filho passar no vestibular, segurar o avião lá em cima, impedir acidente de automóvel, encontrar casa para alugar ou homem ou mulher com quem casar. Toda vez que alguém diz: “Graças a Deus” está dizendo: “Ferramenta útil é esse Deus. Até agora fez tudo direitinho”.
As crianças, do jeito como saem das mãos de Deus, são brinquedos inúteis, não servem para coisa alguma. Assim são a Ana Carolina, a Isabel, a Camila, a Flora, a Ana Paula, a Mariana, a Carol, a Aninha... É compreensível. Deus, segundo Jacob Boehem, místico medieval, é uma criança que só faz brincar. Ele não se dá bem com os adultos. Tanto assim que, no momento em que Adão e Eva pararam de brincar ficaram inúteis, Deus os expulsou do Paraíso. Fez isso não por não gostar deles, mas por medida preventiva: sabia que qualquer Paraíso vira inferno quando um adulto entra lá. Agora, para entrar outra vez no Paraíso, é preciso nascer de novo e virar criança. Aquela estória do livro de contabilidade de Deus, nas mãos de São Pedro, na entrada do céu, é tudo invenção de adulto com cabeça de banqueiro. Na verdade, o que acontece é o seguinte: Na porta do Paraíso está aquela Criança que Alberto Caeiro descreveu num longo poema. Ela não consulta livro e não pergunta nada. Só abre um baú enorme, onde estão guardados todos os brinquedos inventados e por inventar, e diz: “Escolha um para brincar comigo!”
Quem ficar feliz e souber brincar entra. Mas muitos ficam bravos. Traziam, numa mala etiquetada de “boas obras”, todas as utilidades que haviam ajuntado. Queriam mostrá-las a Deus-Pai. Mas a Criança não se interessa pela mala. Os chegantes se sentem ofendidos. Desrespeito serem recebidos assim! Ficam desconfiados. Fecham a cara. Dizem que são pessoas serias. Para isso foram à escola – para serem transformados de meninos em adultos.
A Criança lhes sorri e lhes diz que, naquela escola, eles não passaram. Não podem entrar no Paraiso. Ficaram de DP. “Voltem quando tiverem deixado de ser adultos. Voltem quando tiverem voltado a ser crianças. Voltem quando tiverem aprendido a brincar...”
TEXTO RETIRADO DO LIVRO “NAVEGANDO” DE RUBEM ALVES. PAGINA 15.
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