A praga
É bom atentar para o que o papa diz. Porta-voz de Deus na
terra, ele só pensa pensamentos divinos. Nós, homens tolos, gastamos o tempo
pensando sobre coisas sem importância, tais como o efeito estufa e a
possibilidade do fim do mundo. O papa vai direto ao que é essencial: “O segundo
casamento é uma praga!”
Está certo. O casamento não pertence à ordem abençoada do
paraíso. No paraíso não havia casamento. Na Bíblia não há indicação alguma de
que as relações amorosas entre Adão e Eva tenham sido precedidas pelo
cerimonial a que hoje se dá o nome de casamento – o Criador, celebrante, Adão e
Eva nus, de pé, diante de uma assembleia de animais, tudo terminando com as
palavras sacramentais: “E eu, Jeová, vos declaro marido e mulher. Aquilo que eu
ajuntei os homens não podem separar...”
Os casamentos, o primeiro, o segundo, o terceiro, pertencem
à ordem maldita, caída, praguejada, pós-paraíso. Nessa ordem não se pode
confiar no amor. Por isso se inventou o casamento, esse contrato de prestação
de serviços entre marido e mulher, testemunhado por padrinhos, cuja função é,
no caso de algum dos conjugues não cumprir o contrato , obrigatório a cumprir.
Foi um padre que me ensinou isso. Ele celebrava o casamento.
E foi isso que disse aos noivos: “O que vos une não é o amor. O que vos uni é o
contrato”. Aprendi então que o casamento não é uma celebração de amor. É o
estabelecimento de direitos e deveres. Até as relações sexuais são obrigações que
devem ser cumpridas.
Agora imaginem um homem e uma mulher que muito se amam: são ternos,
amigos, fazem amor, geram filhos. Mas, segundo a Igreja, estão em estado de
pecado: falta ao se relacionamento o selo eclesiástico legitimador. Ele,
divorciado da antiga esposa, não pode se casar de novo porque a igreja proíbe a
praga do segundo casamento. Aí os dois, já no fim da vida, são obrigados a se
separar para participar da eucaristia: cada um para um lado, adeus aos gestos
de ternura... agora está tudo nos conformes. Porque Deus não enxerga o amor. Ele
só vê o selo eclesial.
O papa está certo. O segundo casamento é uma praga. Eu, como
já disse, acho que todos são uma praga, por não ser da ordem paradisíaca, mas
da ordem da maldição. O símbolo da maldição está na palavra “conjúgio”
(casamento), do latin con = junto e jugum = canga. Canga, aquela peça pesada de
madeira que une dois bois. Eles não querem
estar juntos. Mas a canga os obriga, sob pena do ferrão...
Porque o segundo casamento é uma praga? Porque, para
havê-lo, é preciso que o primeiro seja anulado pelo divórcio. Mas, se a Igreja
admitir a anulação do primeiro casamento, terá de admitir também que o
sacramento que o realizou não é aquilo que ela afirma ser: um ato realizado
pelo próprio Deus.
Permitir o divórcio equivale a dizer que o sacramento é uma
balela. Donde a Igreja é uma balela... Com o divórcio, ela seria rebaixada de
seu lugar infalível e passaria a ser apenas mais uma instituição falível entre
outras. A Igreja não admite o divórcio não por amor à família. Mas para
manter-se divina...
A Igreja, sábia, tratou de livrar seus funcionários da
maldição do amor. Proibiu-os de se casar. Livres da maldição do casamento, os
sacerdotes têm a suprema felicidade de noites de solidão, sem conversas, sem
abraços nem beijos. Estão livres da praga...
TEXTO RETIRADO DO LIVRO: “O DEUS QUE CONHEÇO”, DE RUBEM
ALVES, PAGINA 85.
vou ter que ler esse livro
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