sexta-feira, 22 de junho de 2012

VOCÊ E O SEU RETRATO



“O seu retrato mais se parece com você do que você mesma...”


                Quem fala “retrato” já confessou a idade. É velho. Hoje se diz “foto”.
                Segundo o Aurélio, as duas palavras são sinônimas. Não são. Os dicionários frequentemente se enganam. “Retrato” e “foto” são habitantes de mundos que não se tocam.
                A “foto” pertence ao mundo da banalidade: o piquenique, o turismo, a festa. Combina com Bic, com chicletes, com Disneylândia. Tirar uma foto é gesto automático, não precisa pensar. É só apertar um botão.
                Um “retrato”, ao contrário, só aparece ao fim de uma meditação metafísica, religiosa. É o ponto final de uma busca. O retratista busca capturar um pássaro mágico invisível que mora na pessoa a ser retratada e que, vez por outra, faz uma aparição efêmera. Um retratista é um caçador de almas. Roland Barthes escreveu um livro maravilhoso sobre a fotografia: câmara clara. Gostava tanto dele que tinha dois exemplares. Emprestei-os a amigos de memória curta. Acontece que a minha memória é mais curta que a deles. Esqueci-me deles. Perdi os livros. Mas minha memória é boa para as coisas que leio e amo. Lembro-me de Barthes examinando cuidadosamente retratos antigos de sua mãe morta. Tinha saudades dela. Mas faltava nelas a essência amada. Não eram fotografias. Depois de muito procurar encontrou a essência amada numa fotografia velha de sua mãe menina.
                Li muitos poemas de apaixonados. Via de regra, os apaixonados se perdem em sua própria paixão. Como se fossem canções sem palavras. Comovem os sentimentos sem provocar o pensamento. Exceção é o poema de Cassiano Ricardo “Você e seu retrato”. Nele, o amor não se afogou em sentimentos. Deseja se conhecer a si mesmo. Por isso filosofa e faz essa estranha pergunta-confissão:
“Por que tenho saudade
De você, no retrato,
Ainda que o mais recente?
E por que um simples retrato,
Mais que você, me comove,
Se você mesma está presente?”

É mais fácil amar o retrato. Eu já disse que o que se ama é uma “cena”. “Cena” é um quadro belo e comovente que existe na alma antes de qualquer experiência amorosa. A busca amorosa é a busca da pessoa que, se achada, irá completar a cena. Antes de te conhecer eu já te amava... E então, inesperadamente, nos encontramos com o rosto que já conhecíamos antes de o conhecer. E somos então possuídos pela certeza absoluta de haver encontrado o que procurávamos. A cena está completa. Estamos apaixonados.
                Cassiano Ricardo não fala de cena; fala de retrato. Não consegue entender a distancia dolorosa que existe entre o retrato e a pessoa amada. A coisca que amo não está em você, minha amada. Onde terá se escondido? Olho para você e sinto uma sensação de estranheza: como se você não estivesse lá. Por isso tenho saudade de você – quando você mesma está presente. Quero você no retrato, porque você não está em você: “... o seu retrato mais se parece com você do que você mesma (ingrato)”.
                A paixão é o mais puro de todos os sentimentos: ela deseja uma coisa somente. Mas essa coisa que ela deseja, e que se mostra no retrato, mora num corpo habitado por muitas outras imagens, não amadas. Juntas, no mesmo corpo, a Bela e a Fera. A estória é ate generosa porque as feras são belas. Haverá coisa mais bela que um tigre? Lya Luft dizia do seu amado, Hélio Pelgrino, que ele era uma fera: batia portas, brigava no transito, rachou um telefone que não dava linha. Mas nele morava um inesperado riso de menino.
                As feras podem ser amadas porque é possível amar o terrível. Mas, e os sapos? Nojentos. O retrato, tocado pelo sapo, transforma-se então em caricatura ridícula. Não acontece de repente. García Márquez diz que a diferença está no pingo de urina na tampa da privada. Não é xixi, coisa de criança, carinhosa. É urina nojenta. Porco. Pingo de urina na tampa da privada destrói qualquer deus. Um jeito de vestir; um olhar estranho, que examina furtivamente sem nada dizer; uma música estranha numa palavra conhecida: tudo são pingos de urina. E a perversa metamorfose do retrato em sapo se opera.
                Por isso seu retrato me dá mais saudade de você que você mesma. No retrato você está sempre abraçada à lua. E no meu retrato, guardado em sua caixa, eu estou sempre abraçado ao sol. No retrato mora a imagem adorada:

“E, talvez, porque o retrato
já sem o enfeite das palavras tenha um ar de lembrança.
Talvez porque o retrato
(exato, embora malicioso),
Revele algo de criança
(como, no fundo da água, um coral em repouso)”

                E, no final, a revelação terrível e amorosa: “Talvez porque no retrato/você está imóvel,/ (sem respiração...)”. Morta? Os crimes de amor são sempre para preservar você, no retrato- contra você, presente. Entre você presente, e o seu retrato, prefiro o retrato. Oscar Wilde, na The Ballad of the Reading Gaol, diz o seguinte: “Pois todos os homens matam a coisa que eles amam...” Compara-se com o grito final de Don José, na ópera Carmen: “sim. Eu a matei, eu – a minha Carmen adorada!”
                O poema termina com uma afirmação comovente: “Talvez porque todo retrato é uma retratação”. Retratação: desdizer, pedir perdão. Desdigo o que eu disse. Peço perdão. Disse que amava o retrato mais que você. Mas o retrato é mentiroso. O retrato e, morta no papel, a coisa viva que só tem viva no seu corpo, e que aparece e desaparece, no meio das feras e dos sapos. O amor sobrevive na esperança de reaparições. Que a amada apareça tal qual Nossa Senhora, abraçada à lua; e o amado, tal qual Nosso Senhor, abraçado ao sol. Pode ser que vocês não acreditem: mas foi para esse momento efêmero da felicidade que o universo foi criado.

TEXTO RETIRADO DO LIVRO “NAVEGANDO DE RUBEM ALVES, PAGINA 39

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