quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

No princípio...



            Era uma noite escura, sem lua. Num céu sem lua as estrelas brilham mais. Bem no meio do céu estava a constelação Órion, o caçador, seu corpo cingido por um cinturão de três estrelas, as Três Marias, acompanhado dos seus cães, o Cão Maior e o Cão Menor. Sirius, a mais brilhante de todas as estrelas, brilhava na cauda do Cão Maior. De um lado, a constelação do Touro, com a estrela Aldebarã. Mais além as Pléiades, que a Cecília Meireles observava enquanto navegava:

Muitas velas, muitos remos,
Âncora é outro falar...
Tempo que navegaremos não se pode calcular.
Vimos as Pléiades; vemos agora a Estrela Polar.
Muitas velas, muitos remos.
Curta vida. Longo mar...

            A viagem da Cecília chegou ao fim. Agora, eu acho, ela ancorou seu navio nas Pléiades, ao lado da estrela do Pequeno Príncipe...
            As estrelas são misteriosas. Pascal confessava sentir-se esmagado pelo seu silêncio. Essas mesmas estrelas que vemos foram vistas por homens e mulheres há milhares de anos. E elas continuam a brilhar, indiferentes.
            Mestre Benjamin era um contador de estórias. Todos o amavam, especialmente as crianças que adoravam fazer perguntas. Sabem por quê? Porque, em vez de dar respostas às perguntas, ele inventava estórias...
            Naqueles tempos antigos as noites eram escuras e silenciosas. Somente as estrelas e a lua iluminavam os céus. E, na terra, ouvia-se o barulho do vento, o piar das corujas, o uivo de algum lobo...
            De noite, nas tendas, ardiam as lâmpadas a óleo. Todos se reuniam na tenda do Mestre Benjamin para ouvir suas estórias.
            A tenda do Mestre Benjamin estava cheia.
            Uma menina que tinha estado a contemplar as estrelas levantou a mão e perguntou:
            “Mestre Benjamin: Foi sempre assim ou as estrelas nasceram? Como foi que o universo começou?”
            Mestre Benjamin fez silêncio. Seus olhos ficaram semicerrados, como se estivesse tentando ver algo que ninguém via. Depois de alguns minutos começou a falar. Sua voz era quase um sussurro.

No Princípio, antes que qualquer coisa existisse,
Antes que houvesse o Universo,
O que havia era a Poesia.
Deus era Poesia.
A Poesia era Deus.
Deus e a Poesia eram a mesma coisa.
E Deus criou as estrelas para, com elas,
Escrever seus poemas nos céus...
(Prólogo do Evangelho de João, paráfrase)

            “Os poetas sabem que tudo começa com a Palavra. Antes da Poesia, o que havia era um abismo escuro e só se ouvia o ruído das águas do mar sem fim agitado por um vento furioso. Tudo era sem forma e vazio. Não havia beleza, não havia música e nem estórias...
            Foi então que, de repente ouviu-se no meio do caos uma melodia: eram os sonhos adormecidos da matéria que viviam no fundo das águas e que acordavam do seu longo sono. E do fundo das águas lamacentas brotou o Lótus, a flor sagrada branca. A fúria se acalma diante da beleza. O mar ficou tranquilo. Ficou azul. O vento impetuoso tornou-se brisa. Do Lótus surgiu uma luz que espalhou pelo espaço as sete cores do arco-íris. E surgiram as galáxias, as estrelas, o Sol, a Lua. De noite brilhavam estrelas. De dia brilhava o Sol. E entre o dia e a noite a Lua navegava pelo mar azul do céu.
            Mas tudo era grande demais. E a Beleza não gosta de coisas grandes. Ela então formou esse pequeno lugar em que moramos, a Terra, para ali fazer sua obra mais bela: um jardim”.

            Mestre Benjamin fez uma pausa, tomou um grosso livro de capa vermelha que estava sobre uma almofada ao seu lado esquerdo. Na sua lombada estava escrito com letras douradas: Poesias.
            “Esse livro é diferente de todos os outros”, disse Mestre Benjamin. “Nos outros livros escrevem-se as coisas do Tempo. No livro da Poesia escrevem-se as coisas da Eternidade. Nele se encontram todos os poemas que se escreveram no passado, todos os poemas que estão sendo escritos no presente, todos os poemas que serão escritos no futuro. Os poetas não inventam. Eles são anjos que têm a graça de ler os poemas que estão escritos nesse livro”.
            Mestre Benjamin fez uma pausa, folheou o livro de poesias, parou e começou a ler vagarosamente:

No mistério do Sem-Fim equilibra-se um planeta.
No planeta, um jardim.
No jardim, um canteiro.
No canteiro, uma violeta.
E na violeta,
Entre o mistério do Sem-Fim e o planeta,
O dia inteiro,
A asa de uma borboleta.
(Cecília Meireles)

            “Vejam. Tudo começa no mistério do ‘Sem-Fim’. E termina na ‘asa de uma borboleta’, no jardim”.
            Mestre Benjamin olhou os rostos dos que o ouviam. Seus rostos tinham as marcas do êxtase(...). E continuou:
            “Um jardim, Paraíso, lugar de delícias... E viu Deus que era muito bom... E Deus, que tinha um rosto de criança, riu de felicidade e disse: ‘Que bom lugar para se morar, eternamente’. E deixando para sempre o céu vazio passou a viver no jardim, brincando à brisa fresca da tarde. Árvores, regatos, flores, pássaros, borboletas, perfumes, cores, sons, nuvens, chuva, frutas: esses eram os brinquedos do Deus criança.
            No Paraíso não havia templos porque Deus morava no jardim. No Paraíso ninguém rezava porque a Beleza era uma oração”.
            Mestre Benjamin parou de falar. Tomou o livro de poesias e leu:

Rezam meus olhos quando contemplo a beleza.
A beleza é a sombra de Deus no mundo.
(Helena Kolody)

            Leu e se calou por um longo tempo, observando os rostos das pessoas. Aí passou algumas páginas do livro e disse: “Daqui a muitos séculos vai nascer uma mulher solitária que sabia das coisas de Deus. O seu nome será Emily Dickinson. Ouçam o que ela escreverá:
“Alguns guardam o Domingo indo à Igreja –
Eu o guardo ficando em casa –
Tendo um Sabiá como cantor –
E um Pomar por Santuário –
Alguns guardam o Domingo em vestes brancas –
Mas eu só uso minhas Asas –
E ao invés do repicar dos sinos na Igreja –
Nosso pássaro canta na palmeira –
É Deus que está pregando, pregador admirável –
E o seu sermão é sempre curto.
Assim, ao invés de chegar ao Céu só no final –
Eu o encontro o tempo todo no quintal”.

            Nesse momento Mestre Benjamin notou que algumas criancinhas já estavam dormindo no colo de suas mães. Era hora de todos dormirem.
            “Amanha eu conto mais”, ele disse, pondo fim à sessão de estórias.
            Todos foram para suas casas e sonharam que as estrelas eram borboletas nas pétalas das violetas do grande jardim do universo...

Rubem Alves. “Perguntaram-me se acredito em Deus”. Capítulo II


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