segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Deus existe?





De vez em quando alguém me pergunta se eu acredito em Deus. E eu fico mudo, sem dar resposta, porque qualquer resposta que eu desse seria mal entendida. O problema está neste verbo simples, cujo sentido todo mundo pensa entender: acreditar. Mesmo sem estar vendo, eu acredito que existe uma cordilheira chamada Himalaia, e acredito na estrela Alfa Centauro, e acredito que dentro do armário há uma réstia de cebolas... Se eu respondesse à pergunta dizendo que acredito em Deus, o estaria colocando no mesmo rol em que estão as montanhas, a estrela, as cebolas, uma coisa entre outras, não importando que seja a maior de todas.
            Era assim que Casimiro de Abreu acreditava em Deus, e todo mundo decorou e recitou seu poema teológico:





Eu me lembro! Eu me lembro! – Era pequeno
E brincava na praia; o  mar bramia
O crepúsculo  é sossego do céu
Com suas nuvens paralelas
E uma última cor penetrando nas árvores
Até os pássaros.

É esta curva dos pombos, rente aos telhados,
Este cantar de galos e rolas, muito longe;
E, mais longe, o abrolhar de estrelas brancas, ainda sem luz.


Que existência frágil tem um poema, mais frágil que as montanhas, as estrelas, as cebolas. Poemas são meras palavras, que dependem de que alguém as escreva, leia, recite. No entanto, as palavras fazem com o meu corpo aquilo que o universo inteiro não pode fazer.
            Fui jantar com um rico empresário, que acredita em Deus, mas me disse não compreender as razoes por que puseram o retrato da Cecília Meireles, uma mulher velha e feia, numa célula do nosso dinheiro. Melhor teria sido o retrato da Xuxa. Do ponto de vista da existência, ele estava certo. A Xuxa tem mais realidade que a Cecília. Ela tem uma densidade imagética e monetária que a Cecília não tem e nunca quis ter. A Cecília é um ser etéreo, semelhante às nuvens do crepúsculo, à espuma do mar, ao voo dos pássaros. E, no entanto, sei que os seus poemas viverão eternamente. Porque são belos.
            A beleza é entidade volátil – toca a pele e rápido se vai. Pois isso a que nos referimos pelo nome de Deus é assim mesmo: um grande, enorme Vazio, que contém toda a beleza do universo. Se o vaso não fosse vazio, nele não se plantariam as flores. Se o copo não fosse vazio, com ele não se beberia a água. Se a boca não fosse vazia, com ela não se comeria o fruto. Se o útero não fosse vazio, nele não cresceria a vida. Se o céu não fosse vazio, nele não voariam os pássaros, nem as nuvens, nem as pipas...
            E assim, me atrevendo a usar a ontologia de Riboaldo (Grande Sertão Veredas), posso dizer que Deus tem de existir. Tem beleza demais no universo, e beleza não pode ser perdida. E Deus é esse Vazio sem fim, gamela infinita, que pelo universo vai colhendo e ajuntando toda a beleza que há, garantindo que nada se perderá, dizendo que tudo que se amou e se perdeu haverá de voltar, se repetirá de novo. Deus existe para tranquilizar a saudade.
            Posso então responder à pergunta que me fizeram. É claro que acredito em Deus, do jeito como acredito nas cores do crepúsculo, do jeito como acredito no perfume da murta, do jeito como acredito na beleza da sonata, do jeito como acredito na beleza do olhar que contempla o silêncio. Tudo tão frágil, tão inexistente, mas me faz chorar. E, se me faz chorar, é sagrado. É um pedaço de Deus... Dizia o poeta Paul Valéry: “Que seria de nós sem o socorro daquilo que não existe?”.

Rubem Alves. “O Deus que conheço”. Pág. 17. Deus existe?






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