terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

A ociosidade


Quando pequenos, meu irmão e eu éramos vadios e preguiçosos. Todo pretexto nos servia para faltarmos com nossos deveres, cabular as aulas e ficar vagabundeando pelos pomares, campos ou quarteirões da cidade onde vivíamos.

Evidentemente nossos pais se aborreciam com aquilo, mas, em lugar de nos castigar ou partir para uma agressão física, esperavam o momento certo para nos advertir mais seriamente, sem saírem do tratamento amorável e paciente que nos dispensavam.

Esse momento chegou quando, em certo dia, depois do almoço, nos preparávamos para mais uma vadiagem. Nossa mãe não se dirigiu a mim, mas a meu irmão. Desconfiado e expectante, fiquei a esperar pelo que se ia dar. Em seu tom de voz habitual e como que ocasionalmente, ela disse:

- Meu filho, será que você me poderia fazer um favor?

- Pois não, mamãe!

Eu percebia que meu irmão também não estava seguro do que se ia dar. Mamãe prosseguiu:

- Eu gostaria que você fosse até aquele terreno baldio e viesse me contar o que existe ali.

O terreno ficava quase enfrente à nossa casa e nós o conhecíamos muito bem, pois servia aos nossos constantes lazeres. Entretanto, mesmo assim ele atendeu e poucos minutos depois voltava.

- Mamãe, ali só existe lixo e porcaria. Metais enferrujados, papéis, vidros quebrados, arames, garrafas. Nada que se aproveite.

Como se não tivesse ouvido a última observação, mamãe perguntou:

- Mas não haverá uma serventia para aquelas coisas?

- Ah mamãe, está claro que não!

Voltando-se para mim ela pediu:

- Agora você, meu filho. Vá até o portão do jardim e venha me contar o que existe nos outros terrenos.

Aquilo também era claro, mas, como meu irmão, obedeci. E voltei logo, dizendo:

- Nos outros terrenos há casas, pomares e jardins. 

- Que coisa! disse mamãe pensativa. Por que será que se acumularam tantas coisas inúteis no terreno baldio?

Eu e meu irmão, triunfantes, respondemos quase que ao mesmo tempo:

- Ora, mamãe, porque ele está vazio.

- Pobre terreno! exclamou mamãe. Não sendo aproveitado para nada, transformou-se em depósito de lixo. Isso dá o que pensar, pois é como os dias de nossa vida. Se não soubermos aproveitá-los, vão se enchendo de coisas inúteis. Uma vida ociosa é como um terreno baldio: recolhe tudo o que é ruim e imprestável. É por isso que na vida do homem trabalhador, que sabe encher bem os seus dias, não há lugar para os vícios, maldades e enganos de qualquer espécie.

Mamãe não tinha terminado ainda de dizer e meu irmão e eu já nos entreolhávamos rubros de vergonha.

É escusado dizer que nos modificamos. E, ao longo dos anos, em diversas circunstâncias da vida, quando se nos apresenta qualquer oportunidade para a ociosidade, nos lembramos daquele terreno vazio, cheio de papéis velhos, cacos de vidro e lixo. Tudo inaproveitável.

do livro E, para o resto da vida... (Wallace Leal V. Rodrigues)


sábado, 9 de fevereiro de 2013

A cesta


Quando menina eu era preguiçosa e reclamava quando me atribuíam mesmo os mais insignificantes deveres dentro de casa. Sempre que possível eu transferia o que tinha a fazer para os meus irmãos. Eles, entretanto, não tinham melhor disposição do que eu, de modo que estávamos sempre discutindo e de cara feia uns para com os outros. Meus pais nada diziam e esperavam que decidíssemos as querelas. Hoje percebo que papai simplesmente pensava na maneira pela qual iria nos dar uma lição proveitosa.

Uma das minhas tarefas e a que me deixava sempre mal-humorada, consistia em pegar uma cesta e ir comprar pão para a ceia.
Um dia meu pai chegou do trabalho e nos encontrou em conflito, com a cesta no chão, entre nós. Ele estava visivelmente fatigado, porém, ao invés de se sentar um pouco para descansar, voltou-se para mim e me disse em tom carinhoso:
- Filha, dê-me a cesta.

Eu acedi de pronto, certa de que tinha levado a melhor e que um de meus irmãos ia ser mandado à padaria. Mas não foi isso que aconteceu. Dirigindo-se a nós todos propôs-nos o seguinte:

- Filhos, até aqui eu tenho dado o 
dinheiro e vocês tem feito as compras. Vamos mudar um pouco. Vocês vão dar o dinheiro e eu irei fazer as compras. Já estou com a cesta e vou à padaria buscar o pão. Vocês, por favor, me deem o dinheiro para pagá-lo.

Aquela mudança inesperada nos assustou a todos e ficamos por um instante a nos entreolhar sem dizer palavra.

Sem suportar por mais tempo a situação, tomei-lhe a cesta, peguei o dinheiro e fui buscar os pães, muito pensativa, deixando meus irmãos em um silêncio de perplexidade. Papai foi tomar o seu banho como se nada tivesse acontecido.

Voltei e quando já estávamos todos sentados à mesa para a refeição, com muita cordialidade ele se dirigiu a nós:

- Filhos, disse, a ceia representa uma bênção de Deus e o esforço de cada um de nós. Deus nos abençoou para que eu pudesse trabalhar ganhar o dinheiro, vocês fizessem as 
compras com ele e sua mãe cozinhasse a comida. Assim, todos nos alimentamos e nos sentimos satisfeitos. A cooperação é a garantia do lar e da humanidade inteira. Quando ela falta a benção de Deus não pode ser realizada. Ao longo de toda vida vocês verão que tal acontece.

Depois disso nossa atitude mudou. A lição serviu para todos nós e ainda hoje, quando nos reunimos, lembramo-nos de papai e daquela ceia. De cada vez que a nossa colaboração, para qualquer trabalho digno, nos é solicitada, lembramo-nos daquela cesta de carregar pão e alegremente aceitamos a incumbência certos de que, assim, a benção de Deus nos estará beneficiando e beneficiando a todos.
do livro E, para o resto da vida (Wallace Leal V. Rodrigues)

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

A carroça


Uma das grandes preocupações de nosso pai, quando éramos pequenos, consistia em fazer-nos compreender o quanto a cortesia é importante na vida.
Por varias vezes percebi o quanto lhe desagradava o hábito que tem certas pessoas de interromper a conversa quando alguém estava falando. Eu, especialmente, incidia muitas vezes nesse erro. Embora visivelmente aborrecido, ele, entretanto, nunca ralhou comigo por causa disso, o que me surpreendia bastante.
Certa manhã, bem cedo, ele me convidou para ir ao bosque a fim de ouvir o cantar dos pássaros. Acendi com grande alegria e lá fomos nós, umedecendo nossos calçados com o orvalho da relva.
Ele se deteve em uma clareira e, depois de um pequeno silêncio, me perguntou:
- você está ouvindo alguma coisa além do canto dos pássaros?
Apurei o ouvido alguns segundos e respondi:
Estou ouvindo o barulho de uma carroça que deve estar descendo pela estrada.
- isso mesmo... disse ele. É uma carroça vazia...
De onde estávamos não era possível ver a estrada e eu perguntei admirado:
 - Como pode o senhor saber que está vazia?
 - Ora, é muito fácil saber que é uma carroça vazia. Sabe por que?
 - Não! Respondi intrigado.
Meu pai pôs-me a mão no ombro e olhou bem no fundo dos meus olhos, explicando:
- Por causa do barulho que faz. Quanto mais vazia a carroça, maior é o barulho que faz.
Não disse mais nada, porém deu-me muito em que pensar.
Tornei-me adulto e, ainda hoje, quando vejo uma pessoa tagarela e importuna, interrompendo intempestivamente a conversa de todo o mundo ou quando eu mesmo, por distração, vejo-me prestes a fazer o mesmo, imediatamente tenho a impressão de estar ouvindo a voz de meu pai soando na clareira do bosque e me ensinando:
 - Quanto mais vazia a carroça, maior é o barulho que faz!

do livro E PARA O RESTO DA VIDA de Walace Rodrigues



sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

A Arca de Noé...


A tempestade tinha assustado a todos. Chuvas eram raras e quando vinham eram mansas. Mas naquele dia as águas caíram pesadas. As crianças ficaram com medo. Começaram a imaginar uma chuva que não teria fim, uma chuva que caísse sempre, que enchesse os vales e cobrisse tendas e árvores, uma chuva que trouxesse a morte para homens e animais. Foram à tenda de Benjamin e lhe contaram seus medos. E ficaram a olhar dentro dos seus olhos, já enrugados nos cantos pela idade, a longa cabeleira branca caindo sobre os seus ombros. E foi esta a estória que ele lhes contou:
            “Aconteceu, sim, faz muitos e muitos anos. Deus estava triste, muito triste com a maldade dos homens. Ao criar o mundo ele imaginara que os homens seriam felizes tantas eram as coisas bonitas que havia. O mundo era um jardim cheio de árvores, frutos, riachos, bichos amigos. Sendo felizes teriam de ser bons. Mas eles não ficaram bons. Ficaram maus. E, por causa da sua maldade – de onde ela teria vindo? – , a terra foi ficando feia e cobrindo-se de tristeza. Deus penso então em começar tudo de novo. Lavar o mundo da sua maldade, da mesma forma como se lava a roupa suja da sua sujeira. Tomou então a decisão de lavar o mundo com água. Chuva, muita chuva, chuva de dia, chuva de noite, chuva que encheria a terra e afogaria todo o mal.
            Mas havia um homem que havia permanecido bom, ele e sua família. Seu nome era Noé. Noé, agricultor, plantador de uvas, fabricante de vinhos... Deus então o fez sonhar. Pois é assim que Deus se comunica com os homens, fazendo-os sonhar. E ele sonhou com um dilúvio que cobria o mundo, o mundo inteiro transformado num mar sem fim e, flutuando no mar, um navio. Olhando mais de perto o navio, ele viu quem estava nele: ele mesmo e a sua família.
            Noé acordou assustado e contou o sonho para os seus filhos. ‘É uma revelação de Deus’, eles disseram. ‘Precisamos construir um navio para não morrer’. Ato contínuo, buscaram madeiras, tomaram ferramentas, serrotes, martelos, pregos e puseram-se a construir um navio que se chamava arca. Os vizinhos riam deles, achando que haviam endoidecido. Mas eles não ligaram. Continuaram o seu trabalho. Até que o navio ficou pronto. O céu já estava negro, coberto com nuvens sinistras. Os primeiros pingos começaram a cair. Noé  ordenou que sua família entrasse no navio.
            E os animaizinhos? Os animaizinhos não eram malvados, não mereciam morrer, disse um menino.
            “Não”, disse Benjamin com um sorriso. “ O navio era grande para todos eles. Assim, Noé ajuntou todos os animais seus amigos, ovelhas, cabritos, bodes, jumentos, cães, gatos, carneiros, bois, vacas, cavalos, galos, galinhas, patos, gansos, pombas, corvos...”
            “ E os coelhinhos?”, perguntou uma menina que tinha um coelhinho branco no colo.
            “Também os coelhinhos. Os peixes não, porque eles sabem nadar. Entraram todos no navio e Noé fechou a porta. E veio a chuva. Choveu durante quarenta dias e quarenta noites. Depois de quarenta dias parou de chover. As águas baixaram e as plantas ficaram verdes de novo. Mas Noé estava fechado dentro do navio. Não sabia o que estava acontecendo do lado de fora. Aí ele teve uma ideia: pegou um corvo e disse-lhe que voasse sobre a terra e lhe trouxesse informações sobre como estava o mundo. O corvo saiu, viu aquela beleza toda e se esqueceu de voltar para contar. Noé então mandou uma pombinha. A pomba foi, viu e voltou com um ramo de oliveira no bico. Noé compreendeu. O ramo de oliveira estava dizendo: ‘Está tudo em paz’. Desde então, as pombas passaram a ser o símbolo da paz”.
            “Mas, e se Deus resolver mandar outro dilúvio?”, perguntou um menino.
            Benjamin tomou as crianças e as levou para fora de sua tenda. Havia um enorme arco íris no céu.
            “Estão vendo o arco-íris com sete cores? Quando o dilúvio acabou, Deus pensou: ‘Agora os homens ao ficar com medo de outro dilúvio. Preciso dizer a eles que nunca mais um dilúvio destruirá a terra. Darei ordens ao Sol para que ele faça passar sua luz pela água da chuva, e faça um vitral de cores no céu. Sete cores. Esse vitral de sete cores, o arco-íris, será a minha assinatura nos céus, como garantia da minha promessa...’”
            Ao final da história, as crianças sorriram.
            Saíram para fora da tenda de Benjamin e começaram a brincar. Com o arco-íris nos céus pode-se brincar sobre a terra sem medo...


Rubem Alves. Perguntaram-me se acredito em Deus. Capítulo VII. A arca de Noé.


De vez em quando  é bom lembrarmos das velhas estórias, que sempre serão novas também. Pra que a gente não esqueça do amor de Deus, das suas promessas e do valor que temos. Do valor que devemos dar à vida, ao nosso planeta, aos nossos amigos, à nossa família. Do valor que devemos dar à Deus, que nos ama incondicionalmente.
Essas estórias, não são tão simples como parecem. Crescemos ouvindo elas e não damos a importância que merecem.... Deus ainda nos ensina com elas..



quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

No princípio...



            Era uma noite escura, sem lua. Num céu sem lua as estrelas brilham mais. Bem no meio do céu estava a constelação Órion, o caçador, seu corpo cingido por um cinturão de três estrelas, as Três Marias, acompanhado dos seus cães, o Cão Maior e o Cão Menor. Sirius, a mais brilhante de todas as estrelas, brilhava na cauda do Cão Maior. De um lado, a constelação do Touro, com a estrela Aldebarã. Mais além as Pléiades, que a Cecília Meireles observava enquanto navegava:

Muitas velas, muitos remos,
Âncora é outro falar...
Tempo que navegaremos não se pode calcular.
Vimos as Pléiades; vemos agora a Estrela Polar.
Muitas velas, muitos remos.
Curta vida. Longo mar...

            A viagem da Cecília chegou ao fim. Agora, eu acho, ela ancorou seu navio nas Pléiades, ao lado da estrela do Pequeno Príncipe...
            As estrelas são misteriosas. Pascal confessava sentir-se esmagado pelo seu silêncio. Essas mesmas estrelas que vemos foram vistas por homens e mulheres há milhares de anos. E elas continuam a brilhar, indiferentes.
            Mestre Benjamin era um contador de estórias. Todos o amavam, especialmente as crianças que adoravam fazer perguntas. Sabem por quê? Porque, em vez de dar respostas às perguntas, ele inventava estórias...
            Naqueles tempos antigos as noites eram escuras e silenciosas. Somente as estrelas e a lua iluminavam os céus. E, na terra, ouvia-se o barulho do vento, o piar das corujas, o uivo de algum lobo...
            De noite, nas tendas, ardiam as lâmpadas a óleo. Todos se reuniam na tenda do Mestre Benjamin para ouvir suas estórias.
            A tenda do Mestre Benjamin estava cheia.
            Uma menina que tinha estado a contemplar as estrelas levantou a mão e perguntou:
            “Mestre Benjamin: Foi sempre assim ou as estrelas nasceram? Como foi que o universo começou?”
            Mestre Benjamin fez silêncio. Seus olhos ficaram semicerrados, como se estivesse tentando ver algo que ninguém via. Depois de alguns minutos começou a falar. Sua voz era quase um sussurro.

No Princípio, antes que qualquer coisa existisse,
Antes que houvesse o Universo,
O que havia era a Poesia.
Deus era Poesia.
A Poesia era Deus.
Deus e a Poesia eram a mesma coisa.
E Deus criou as estrelas para, com elas,
Escrever seus poemas nos céus...
(Prólogo do Evangelho de João, paráfrase)

            “Os poetas sabem que tudo começa com a Palavra. Antes da Poesia, o que havia era um abismo escuro e só se ouvia o ruído das águas do mar sem fim agitado por um vento furioso. Tudo era sem forma e vazio. Não havia beleza, não havia música e nem estórias...
            Foi então que, de repente ouviu-se no meio do caos uma melodia: eram os sonhos adormecidos da matéria que viviam no fundo das águas e que acordavam do seu longo sono. E do fundo das águas lamacentas brotou o Lótus, a flor sagrada branca. A fúria se acalma diante da beleza. O mar ficou tranquilo. Ficou azul. O vento impetuoso tornou-se brisa. Do Lótus surgiu uma luz que espalhou pelo espaço as sete cores do arco-íris. E surgiram as galáxias, as estrelas, o Sol, a Lua. De noite brilhavam estrelas. De dia brilhava o Sol. E entre o dia e a noite a Lua navegava pelo mar azul do céu.
            Mas tudo era grande demais. E a Beleza não gosta de coisas grandes. Ela então formou esse pequeno lugar em que moramos, a Terra, para ali fazer sua obra mais bela: um jardim”.

            Mestre Benjamin fez uma pausa, tomou um grosso livro de capa vermelha que estava sobre uma almofada ao seu lado esquerdo. Na sua lombada estava escrito com letras douradas: Poesias.
            “Esse livro é diferente de todos os outros”, disse Mestre Benjamin. “Nos outros livros escrevem-se as coisas do Tempo. No livro da Poesia escrevem-se as coisas da Eternidade. Nele se encontram todos os poemas que se escreveram no passado, todos os poemas que estão sendo escritos no presente, todos os poemas que serão escritos no futuro. Os poetas não inventam. Eles são anjos que têm a graça de ler os poemas que estão escritos nesse livro”.
            Mestre Benjamin fez uma pausa, folheou o livro de poesias, parou e começou a ler vagarosamente:

No mistério do Sem-Fim equilibra-se um planeta.
No planeta, um jardim.
No jardim, um canteiro.
No canteiro, uma violeta.
E na violeta,
Entre o mistério do Sem-Fim e o planeta,
O dia inteiro,
A asa de uma borboleta.
(Cecília Meireles)

            “Vejam. Tudo começa no mistério do ‘Sem-Fim’. E termina na ‘asa de uma borboleta’, no jardim”.
            Mestre Benjamin olhou os rostos dos que o ouviam. Seus rostos tinham as marcas do êxtase(...). E continuou:
            “Um jardim, Paraíso, lugar de delícias... E viu Deus que era muito bom... E Deus, que tinha um rosto de criança, riu de felicidade e disse: ‘Que bom lugar para se morar, eternamente’. E deixando para sempre o céu vazio passou a viver no jardim, brincando à brisa fresca da tarde. Árvores, regatos, flores, pássaros, borboletas, perfumes, cores, sons, nuvens, chuva, frutas: esses eram os brinquedos do Deus criança.
            No Paraíso não havia templos porque Deus morava no jardim. No Paraíso ninguém rezava porque a Beleza era uma oração”.
            Mestre Benjamin parou de falar. Tomou o livro de poesias e leu:

Rezam meus olhos quando contemplo a beleza.
A beleza é a sombra de Deus no mundo.
(Helena Kolody)

            Leu e se calou por um longo tempo, observando os rostos das pessoas. Aí passou algumas páginas do livro e disse: “Daqui a muitos séculos vai nascer uma mulher solitária que sabia das coisas de Deus. O seu nome será Emily Dickinson. Ouçam o que ela escreverá:
“Alguns guardam o Domingo indo à Igreja –
Eu o guardo ficando em casa –
Tendo um Sabiá como cantor –
E um Pomar por Santuário –
Alguns guardam o Domingo em vestes brancas –
Mas eu só uso minhas Asas –
E ao invés do repicar dos sinos na Igreja –
Nosso pássaro canta na palmeira –
É Deus que está pregando, pregador admirável –
E o seu sermão é sempre curto.
Assim, ao invés de chegar ao Céu só no final –
Eu o encontro o tempo todo no quintal”.

            Nesse momento Mestre Benjamin notou que algumas criancinhas já estavam dormindo no colo de suas mães. Era hora de todos dormirem.
            “Amanha eu conto mais”, ele disse, pondo fim à sessão de estórias.
            Todos foram para suas casas e sonharam que as estrelas eram borboletas nas pétalas das violetas do grande jardim do universo...

Rubem Alves. “Perguntaram-me se acredito em Deus”. Capítulo II


quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Explicação










         Mosaicos são obras de arte. São feitos com cacos. Os cacos, em si, não têm beleza alguma. Mas se um artista os ajuntar segundo uma visão de beleza eles se transformam numa obra de arte.
            Músicas são mosaicos de sons. Notas são cacos. Não são nem bonitas nem feias. Mas se um compositor as organizar numa “frase” elas passam a dizer algo. Transformam-se em temas. Sonatas e sinfonias são feitas com temas entrelaçados.
            Também nós somos feitos de cacos. Milan Kundera comparou a vida a uma partitura musical. “O ser humano, guiado pelo sentido da beleza transpõe o acontecimento fortuito [o caco] para fazer dele um tema que, em seguida, fará parte da partitura de sua vida. Voltará ao tema repetindo-o, transpondo-o, modificando-o, desenvolvendo-o, como faz um compositor com os temas da sua sonata”. (A insustentável leveza do ser, p.58). Somos um mosaico espiral, à semelhança do Bolero de Ravel.
            As Escrituras Sagradas são um livro cheio de cacos. Nelas se encontram poemas, estórias, pitadas de sabedoria, relatos de acontecimentos(...), eventos sangrentos. Ao ler as Escrituras comportamo-nos como um artista que seleciona cacos para construir um mosaico ou como um compositor a compor a sua sonata.
            Os cacos das Escrituras Sagradas existiram por muito tempo como estórias que eram contadas oralmente, antes de serem transformados em textos para serem lidos. O registro escrito dessa tradição oral trouxe uma vantagem: as estórias continuaram a existir mesmo depois da “morte” do Contador de Estórias. E trouxe uma desvantagem: transformados em textos escritos perdeu-se a figura do Contador de Estórias. Com isso, os leitores começaram a ler as “estórias” como se fossem “história”.
            “História” refere-se a coisas que aconteceram realmente no passado e nunca mais acontecerão, como o naufrágio do Titanic, que pertence à “história” e nunca mais acontecerá. Mas a parábola do Bom Samaritano nunca aconteceu. Foi uma “estória” contada por um mestre contador de estórias chamado Jesus.
            As estórias são contadas no passado, mas elas não têm passado. Só têm presente. Estão sempre vivas. Quando as ouvimos ficamos “possuídos”, rimos, choramos, amamos, odiamos – embora elas nunca tenham acontecido.
            A “história” é criatura do tempo. As “estórias” são emissárias da eternidade.
            Muitos são os mosaicos que podem ser feitos com um monte de cacos. Muitas são as músicas que podem ser feitas com as doze notas da escala cromática. Horror, humor, amor, vida, morte, vingança... Tudo depende do coração do artista. Como disse Jesus, o homem bom tira coisas boas do seu bom tesouro; o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro. O coração feio faz mosaicos e músicas feias. Coração bonito faz mosaicos e músicas bonitas. Os mosaicos e as sonatas são o retrato de quem os fez.
            Cada religião é um mosaico, um jeito de ajuntar os cacos. Cada religião é uma sonata: uma rede de temas. Escolhi os cacos de que mais gosto para fazer o meu mosaico, o meu livro de estórias, a minha sonata, o meu altar à beira do abismo.

Rubem Alves. “Perguntaram-me se acredito em Deus”. Pag 15-17.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Deus existe?





De vez em quando alguém me pergunta se eu acredito em Deus. E eu fico mudo, sem dar resposta, porque qualquer resposta que eu desse seria mal entendida. O problema está neste verbo simples, cujo sentido todo mundo pensa entender: acreditar. Mesmo sem estar vendo, eu acredito que existe uma cordilheira chamada Himalaia, e acredito na estrela Alfa Centauro, e acredito que dentro do armário há uma réstia de cebolas... Se eu respondesse à pergunta dizendo que acredito em Deus, o estaria colocando no mesmo rol em que estão as montanhas, a estrela, as cebolas, uma coisa entre outras, não importando que seja a maior de todas.
            Era assim que Casimiro de Abreu acreditava em Deus, e todo mundo decorou e recitou seu poema teológico:





Eu me lembro! Eu me lembro! – Era pequeno
E brincava na praia; o  mar bramia
O crepúsculo  é sossego do céu
Com suas nuvens paralelas
E uma última cor penetrando nas árvores
Até os pássaros.

É esta curva dos pombos, rente aos telhados,
Este cantar de galos e rolas, muito longe;
E, mais longe, o abrolhar de estrelas brancas, ainda sem luz.


Que existência frágil tem um poema, mais frágil que as montanhas, as estrelas, as cebolas. Poemas são meras palavras, que dependem de que alguém as escreva, leia, recite. No entanto, as palavras fazem com o meu corpo aquilo que o universo inteiro não pode fazer.
            Fui jantar com um rico empresário, que acredita em Deus, mas me disse não compreender as razoes por que puseram o retrato da Cecília Meireles, uma mulher velha e feia, numa célula do nosso dinheiro. Melhor teria sido o retrato da Xuxa. Do ponto de vista da existência, ele estava certo. A Xuxa tem mais realidade que a Cecília. Ela tem uma densidade imagética e monetária que a Cecília não tem e nunca quis ter. A Cecília é um ser etéreo, semelhante às nuvens do crepúsculo, à espuma do mar, ao voo dos pássaros. E, no entanto, sei que os seus poemas viverão eternamente. Porque são belos.
            A beleza é entidade volátil – toca a pele e rápido se vai. Pois isso a que nos referimos pelo nome de Deus é assim mesmo: um grande, enorme Vazio, que contém toda a beleza do universo. Se o vaso não fosse vazio, nele não se plantariam as flores. Se o copo não fosse vazio, com ele não se beberia a água. Se a boca não fosse vazia, com ela não se comeria o fruto. Se o útero não fosse vazio, nele não cresceria a vida. Se o céu não fosse vazio, nele não voariam os pássaros, nem as nuvens, nem as pipas...
            E assim, me atrevendo a usar a ontologia de Riboaldo (Grande Sertão Veredas), posso dizer que Deus tem de existir. Tem beleza demais no universo, e beleza não pode ser perdida. E Deus é esse Vazio sem fim, gamela infinita, que pelo universo vai colhendo e ajuntando toda a beleza que há, garantindo que nada se perderá, dizendo que tudo que se amou e se perdeu haverá de voltar, se repetirá de novo. Deus existe para tranquilizar a saudade.
            Posso então responder à pergunta que me fizeram. É claro que acredito em Deus, do jeito como acredito nas cores do crepúsculo, do jeito como acredito no perfume da murta, do jeito como acredito na beleza da sonata, do jeito como acredito na beleza do olhar que contempla o silêncio. Tudo tão frágil, tão inexistente, mas me faz chorar. E, se me faz chorar, é sagrado. É um pedaço de Deus... Dizia o poeta Paul Valéry: “Que seria de nós sem o socorro daquilo que não existe?”.

Rubem Alves. “O Deus que conheço”. Pág. 17. Deus existe?






terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Deus e a Beleza!



FELIZ ANO NOVO!!!! QUE VENHA 2013!!!! DEPOIS DE MUITO TEMPO SEM POSTAR! NÃO PODIA DEIXAR DE DIZER NADA NO PRIMEIRO DIA DO ANO!!!


Deus e a beleza

            Uma velhinha de voz trêmula e pele cheia de rugas pediu: “Mestre, fale-nos sobre
Deus..”.
            Mestre Benjamin fez silêncio. Olhou para o vazio. Vagarosamente, um sorriso foi-se abrindo.
            “Quantas pessoas aqui na minha tenda estão pensando no ar?”, ele perguntou. “Por favor, levantem uma mão...”
            Ninguém levantou a mão.
            “Ninguém levantou a mão... Ninguém está pensando no ar. Ninguém nem sabe direito o que é o ar. O ar é a nossa vida e não precisamos pensar nele e nem dizer o seu nome para que ele nos dê vida. Mas o homem que se afoga do fundo das águas só pensa no ar. Deus é assim. Não é preciso pensar nele e pronunciar o seu nome. Ao contrário, quando se pensa Nele o tempo todo é porque está se afogando...
            Que desejamos para os nossos filhos? Que eles sejam felizes. Sorrimos ao vê-los por aí a correr, a pular, a cantar, a brincar, pensando nas coisas de criança. Mas enquanto brincam e riem eles não pensam em nós. Se um filho, ao se levantar, viesse até você e o elogiasse, e agradecesse porque você lhe deu a vida e jurasse amor para sempre, e fizesse a mesma coisa na hora do almoço, e repetisse os mesmos gestos e palavras ao meio da tarde, e de noite fizesse tudo de novo, suspeitaríamos de que alguma coisa não está bem. O que desejamos é que eles gozem a vida sem pensar em nós. Quem pensa demais e fala demais sobre Deus é porque não o está respirando. A fala indica uma ausência. ‘Pensar em Deus é desobedecer a Deus. Porque Deus não quis que o conhecêssemos, por isso se não nos mostrou’ (Alberto Caeiro)”.
            Fez-se silêncio. Foi quando uma lufada de vento entrou pela tenda fazendo balançar a lâmpada de óleo que pendia o teto.
            “Deus é como o vento. Sentimos na pele quando ele passa, ouvimos a sua música nas folhas das árvores e o seu assobio nas gretas das portas. Mas não sabemos de onde vem nem para onde vai. Na flauta, o vento se transforma em melodia. Mas não é possível engarrafá-lo. No entanto, as religiões tentam engarrafá-lo em lugares fechados a que elas dão o nome de ‘casa de Deus’. Mas, se Deus mora numa casa, estará ele ausente do resto do mundo? Vento engarrafado não sopra...”
            Ouviu-se então o pio distante de uma coruja.
            “Deus é uma suspeita do nosso coração de que o universo tem um coração que pulsa como o nosso. Suspeita... Nenhuma certeza. Fujam dos que têm certezas. Olhem bem: eles trazem gaiolas nas suas mãos. Os pássaros que têm presos nas suas gaiolas são pássaros empalhados. Ídolos.
            Deus nos deu asas. Mas as religiões inventaram gaiolas.
            Tudo o que vive é pulsação do sagrado. As aves do céu, os lírios dos campos... Até o mais insignificante grilo, no seu cricri rítmico, é uma música do Grande Mistério.
            É preciso esquecer os nomes de Deus que as religiões inventaram para encontrá-lo sem nome no assombro da vida.
            Reverência pela vida: é a forma mais alta de oração. Sem nome... O nome de Deus não pode ser pronunciado...
            Não precisamos dizer o nome ‘rosa’ para sentir seu perfume.
            Não precisamos dizer o nome ‘mel’ para sentir sua doçura.
            Muitas pessoas que jamais pronunciam o nome de Deus o conhecem como reverência pela vida.
            Há pessoas que se sentem religiosas por acreditar em Deus. De que vale isso? Os demônios também acreditam e estremecem ao ouvir o seu nome (Tiago 2:19). A pergunta não deveria ser ‘Você acredita em Deus?’, mas ‘Você se comove com a beleza?’ Deus nunca foi visto por ninguém. Ele se mostra na experiência da beleza.
            Os homens religiosos procuram Deus no invisível e no mundo após a morte. Quando alguém morre, eles repetem como consolo: ‘Deus o levou para si’. Então, enquanto vivo, ele estava distante de Deus? Deus é Deus dos mortos ou Deus dos vivos? Deus não mora no mundo dos mortos. Ele mora no nosso mundo, passeia pelo jardim. Deus é beleza. E se ele ama o que é feio é só para torná-lo belo... Por isso ele ama os desertos: porque neles se escondem fontes...
            Quer ver Deus? Veja a beleza do sol que se põe, sem pensar em Deus.
            Quer ouvir Deus? Entregue-se à beleza da música, sem pensar em Deus.
            Quer sentir o cheiro de Deus? Respire fundo o cheiro do jasmim, sem pensar em Deus.
            Quer saber como é o coração de Deus? Empurre uma criança num balanço, porque Deus tem um coração de criança, sem pensar em Deus.
            Há beleza demais no universo. Mas o tempo vai nos roubando as coisas que amamos. Vai-se o arbusto, vai-se a montanha, vão-se os riachos cristalinos, vão-se as pessoas amadas, vamos nós... o tempo é um monstro que devora seus filhos. Fica a saudade. Saudade é a presença da ausência das coisas que amamos e nos foram roubadas pelo tempo. Quando se pronuncia o nome sagrado está-se afirmando que a beleza amada não está perdida no passado. Está escrito num poema sagrado: ‘Lança o teu pão sobre as águas porque depois de muitos dias o encontrarás...’ (Eclesiastes 11:1). As águas dos rios são circulares, o tempo é circular, o que foi perdido volta, um eterno retorno... Deus existe para nos curar da saudade...
            Eu gostaria de dar um conselho: ‘Não sejam curiosos a respeito de Deus, pois eu sou curioso sobre todas as coisas e não sou curioso a respeito de Deus. Não há palavra capaz de dizer quando eu me sinto em paz perante Deus e a morte. Escuto e vejo Deus em todos os objetos, embora de Deus eu não entenda nem um pouquinho... Eu vejo Deus em cada uma das 24 horas e em cada instante de cada uma delas, nos rostos dos homens e das mulheres eu vejo Deus...’ (Walt Whitman). ‘Sejamos simples e calmos como os regatos e as árvores e Deus amar-nos-á fazendo de nós belos como as árvores e os regatos, e dar-nos-á verdor na sua primavera e um rio aonde ir ter quando acabemos’. (Alberto Caeiro)”.
            Ouvidas essas palavras, a velhinha sorriu para o Mestre Benjamin e fez um gesto com sua mão, abençoando-o.

Rubem Alves. “Perguntaram-me se acredito em Deus. Capítulo VI.