Mais poderoso que o nome do demônio é o riso. Quando ele começar a atormentá-lo, ponha-se a rir. O demônio ou demônios que moram em você fugirão espavoridos. Porque, como disse Nietzche, maravilhoso exorcista, os demônios são o “espírito da gravidade” e não suportam a leveza do riso.
Sabendo
que em épocas passadas pratiquei a psicanálise, você pediu que eu fizesse o
diagnostico de uma perturbação que o aflige de tempos em tempos.
Li a descrição
de seus sintomas com a maior atenção. Você é uma pessoa educada, profissional
competente, maduro, generoso, respeitado. Mas, repentinamente, por causa de um
pequeno incidente, passa por uma súbita metamorfose. Você deixa de ser o que
normalmente é e passa a ser um outro. O Mr. Hyde monstruoso da novela de Robert
Louis Stevenson, The Strange Case of Dr. Jekyll na Mr. Hyde, publicada em português
com o titulo O médico e o monstro.
Para início
de conversa, devo informa-lo de que a psicanálise é um tipo de feitiçaria, e, a
se acreditar na opinião de William R. Fairbaim, psicanalista que todo mundo
respeita, a função do terapeuta é exorcizar demônios. O paciente, então, é alguém
que está possuído por um poder estranho. O que varia não é a doença, mas a
intensidade da febre.
Casos como
o seu não raros e ocupam um lugar destacado na literatura. Há de se levantar a hipótese
de que todo mundo é louco por dentro. O que não é de todo mau, tanto assim
Fernando Pessoa dava graças a Deus por ser louco. Loucura e criatividade moram
em quartos vizinhos...
Nos tempos
em que eu era feiticeiro, estava atendendo uma paciente que disse:
- É, eu tenho ideia fraca...
Em tom de brincadeira, interferi:
- Alto
lá! Nesta sala somente eu tenho ideias fracas...
Ela ficou espantada e não entendeu. Aí expliquei:
- Eu
penso as mesmas loucuras que você pensa...
Levantei-me
e a chamei para ver o quadro de hieronymus Bosch O jardim das delícias. É uma
loucura completa. De onde Bosch tirou aquelas imagens e cenas medonhas? De dentro
da própria cabeça. Quer dizer: a cabeça de Bosch era um hospício, morada de
loucuras. Mas ele não era louco. Era um artista, pintor. Ele não era louco
porque suas ideias eram “fracas”. Ele sabia que não eram verdade. Não eram
coisas. Eram criações de sua imaginação. Só existiam na cabeça dele. Agora, se
ele pensasse que aquelas imagens e cenas eram realidade, seria um louco
varrido. Seu lugar seria o hospício. Em vez disso, seu lugar é o Museu do Prado.
- Eu
penso as mesmas coisas estranhas que você – continuei. – Mas sei que são só pensamentos, nuvens brancas levadas por uma
brisa. Eu mando neles. E com eles faço literatura. Mas seus pensamentos são fortes.
As nuvens brancas se transformaram em nuvens negras, e chove, com trovoes e relâmpagos,
e você fica toda molhada. Você não é dona deles. Eles mandam em você. Você fica
“possuída” por eles...
Sua descrição
da metamorfose pela qual você passa me fez lembrar aquele personagem de um
seriado, o Hulk. Normalmente homem simpático e franzino, de repente, quando
provocado, ele se transformava num outro, um gigante. Ninguém diria que se
tratava da mesma pessoa. Os olhos ficavam estranhos, vidrados, o corpo inchava
com músculos descomunais, a pele verdejava, as roupas se rasgavam e ele ficava possuído
por uma força e uma fúria incontroláveis. Ainda bem que não é isso que acontece
com você, pois, se fosse, sua despesa com o alfaiate seria enorme...
Tudo acontece
repentinamente. O conselho de contar até dez não serve para nada. Antes de
começar a contagem, você já está possuído. Tudo em você fica diferente, e os
outros o olham com espanto. Mas esse outro em que você se transformou nem liga.
Não há palavra que o segure. É como se fosse uma ejaculação de fúria. Aí,
passado o surto, o Outro deixa a cena. Some. E você volta, coberto de vergonha,
para o corpo de onde o Outro o havia expulsado. É hora de tentar consertar os
estragos.
Você sabe
pedir desculpas. Isso é uma virtude. Mas também sabe que há coisas que não podem ser
consertadas. Pode ser que a pessoa magoada pelo Hulk o desculpe, mas é impossível
que ela se esqueça do que ela viu. Ela viu o Outro que mora em você e de que ninguém
gosta. Nem mesmo você.
Seu horror
é triplo. Primeiro, o horror por aquilo que o Outro, com a sua cara, faz.
Segundo,
o horror de que os outros o tenham visto daquele jeito monstruoso. Você deve
conhecer um brinquedinho, não sei o nome em português. Em inglês é Jack-in-box.
É um cubo de metal com uma manivela. O cubo metálico é bonitinho por fora. Aí,
a gente vai rodando a manivela e, de repente, a tampa se abre e de dentro do
cubo salta uma cabeça grotesca que nos dá um susto. Vendo o cubo fechado, ninguém
suspeitaria da cabeça assustadora que está dentro dele. Pois você é parecido
com o Jack-in-the-box. Todo mundo fica com medo de rodar a manivela.
Terceiro,
o simples horror de que more em você um hóspede desconhecido que está alem do
seu controle racional. Se conselhos racionais valessem alguma coisa, eu lhe
daria vários, e até poderia escrever um livro de autoajuda sobre o assunto. Mas,
quando o hóspede desconhecido entra em cena, já é tarde demais para fazer
qualquer coisa. Até mesmo os anjos da guarda fogem...
Com base
nos meus conhecimentos híbridos de psicanálise e magia, meu diagnóstico é o
seguinte: você sofre de uma possessão demoníaca intermitente. Imagino seu
sorriso de incredulidade ao ler isso. Como é possível que um homem como o Rubem
Alves ainda acredite em demônios? Demônios são fantasias do imaginário religioso...
De fato,
demônios são fantasias do imaginário religioso. As religiões os pintaram como
seres repulsivos, com cara de bode, chifres na cabeça, peludos, com rabo,
masculinos, genitais em forquilha para penetrar dois orifícios ao mesmo tempo e
especialistas em soltar ventilações sulfúricas malcheirosas pelas ventas e
partes inferiores. Invisíveis, vagam pelos espaços vazios à procura de ninhos
onde botar seus ovos.
Escolhida
a vitima, eles se aproximam e por meio de truques sedutores tentam entrar na
casa onde desejam se aninhar. Se o dono da casa é bobo e acredita na conversa
deles, entram, tomam posse do espaço e não saem pacificamente.
Você já
deve ter ouvido falar: “ele ficou fora de si”. Se ficou fora de si, quem é que
ficou dentro de si? Só pode ser um Outro que não ele. Então, naquele momento, o
corpo já não é posse dele. Está sob controle de um Outro, que faz coisas que
ele jamais faria.
Nos tribunais
se usa falar em “privação dos sentidos” para se referir a uma pessoa que não é responsável
por aquilo que faz. É a forma forense de se referir ao “ficar fora de si”,
enquanto “um outro” fica dentro de si. Isso quer dizer que a própria linguagem
dos juízes e advogados reconhecessem como real essa situação em que o corpo
fica possuído por uma entidade estranha. Assim, se o meu corpo cometeu um crime
sob a condição de “privação dos sentidos”, isto é, enquanto estava possuído por
um estranho, eu não o cometi. Não sou culpado, não posso ser condenado.
Não descarte
os demônios com seu sorriso zombeteiro. Pode ser que o nome e as imagens não sirvam
mais. Mas a “coisa” continua a existir
com outros nomes. É como um vírus de computador – ele entra sem permissão e faz
a maior confusão. Pois assim são os demônios...
Vírus, demônios,
dois nomes diferentes para a mesma coisa. Com uma diferença: é mais fácil se
livrar do vírus que dos demônios.
LOBISOMEM
Um jeito
de compreender o que é possessão demoníaca é a lenda do lobisomem. Ela fala de
um homem bom e tranquilo dentro do qual mora um lobo. Mas o lobo fica trancado
em uma jaula. Aparece vez por outra, quando, por razoes que não se sabe, a
jaula se abre e ele sai. A lenda diz que ele sai em noites de lua cheia. Mas acho
que não é bem assim. Ele sai – não se sabe quando nem por que. Aí, toma conta
do corpo. E o homem bom e tranquilo, ele o tranca na jaula. Livre, ele é só
fúria incontrolável. Esgotada sua fúria, retorna à sua morada, dentro da jaula,
e o homem bom e tranquilo retorna ao seu lugar. Os dois nunca se encontram. Nem
mesmo se conhecem.
É lenda,
mas é verdade. Isso tem um nome na linguagem da psicanálise. É chamado de “núcleo
psicótico”. Em linguagem comum: dentro de todo mundo mora um doido. Em alguns,
a jaula é fechada a sete chaves e o bicho não sai. Mas, em outros, a fechadura
é fraca e ele sai. Os religiosos dão a isso o nome de “possessão demoníaca”. Os
evangelhos falam de um homem assim. Era tão forte que nem mesmo as correntes
mais grossas conseguiam conte-lo. O ruim da expressão “possessão demoníaca” é
que ela sugere que o bicho é um invasor que em de fora. A psicanálise diz, ao
contrário, que ele não é um invasor, mas um morador permanente do corpo, parte
da gente.
Aí tomam-se
as providencias para eliminar o demônio. Levam o homem a um psicólogo,
psicanalista ou psiquiatra, nomes modernos para oficio de exorcista. Mas o
exorcista fica perdido, porque o homem que está diante dele é tão manso, tão bom,
fala de literatura, de arte, de crianças...
Ele nada
sabe sobre o lobo. Não é ele. É um outro. O lobo está dormindo em sua cela...
TEXTO RETIRADO DO LIVRO "SOBRE DEMÔNIOS E PECADOS" DE RUBEM ALVES, PAGINA 11.