domingo, 20 de maio de 2012

A possessão demoníaca




                Mais poderoso que o nome do demônio é o riso. Quando ele começar a atormentá-lo, ponha-se a rir. O demônio ou demônios que moram em você fugirão espavoridos. Porque, como disse Nietzche, maravilhoso exorcista, os demônios são o “espírito da gravidade” e não suportam a leveza do riso.


                Sabendo que em épocas passadas pratiquei a psicanálise, você pediu que eu fizesse o diagnostico de uma perturbação que o aflige de tempos em tempos.
                Li a descrição de seus sintomas com a maior atenção. Você é uma pessoa educada, profissional competente, maduro, generoso, respeitado. Mas, repentinamente, por causa de um pequeno incidente, passa por uma súbita metamorfose. Você deixa de ser o que normalmente é e passa a ser um outro. O Mr. Hyde monstruoso da novela de Robert Louis Stevenson, The Strange Case of Dr. Jekyll na Mr. Hyde, publicada em português com o titulo O médico e o monstro.
                Para início de conversa, devo informa-lo de que a psicanálise é um tipo de feitiçaria, e, a se acreditar na opinião de William R. Fairbaim, psicanalista que todo mundo respeita, a função do terapeuta é exorcizar demônios. O paciente, então, é alguém que está possuído por um poder estranho. O que varia não é a doença, mas a intensidade da febre.
                Casos como o seu não raros e ocupam um lugar destacado na literatura. Há de se levantar a hipótese de que todo mundo é louco por dentro. O que não é de todo mau, tanto assim Fernando Pessoa dava graças a Deus por ser louco. Loucura e criatividade moram em quartos vizinhos...
                Nos tempos em que eu era feiticeiro, estava atendendo uma paciente que disse:
                 - É, eu tenho ideia fraca...
Em tom de brincadeira, interferi:
                - Alto lá! Nesta sala somente eu tenho ideias fracas...
Ela ficou espantada e não entendeu. Aí expliquei:
                - Eu penso as mesmas loucuras que você pensa...
                Levantei-me e a chamei para ver o quadro de hieronymus Bosch O jardim das delícias. É uma loucura completa. De onde Bosch tirou aquelas imagens e cenas medonhas? De dentro da própria cabeça. Quer dizer: a cabeça de Bosch era um hospício, morada de loucuras. Mas ele não era louco. Era um artista, pintor. Ele não era louco porque suas ideias eram “fracas”. Ele sabia que não eram verdade. Não eram coisas. Eram criações de sua imaginação. Só existiam na cabeça dele. Agora, se ele pensasse que aquelas imagens e cenas eram realidade, seria um louco varrido. Seu lugar seria o hospício. Em vez disso, seu lugar é o Museu do Prado.
                - Eu penso as mesmas coisas estranhas que você – continuei. – Mas sei que são  só pensamentos, nuvens brancas levadas por uma brisa. Eu mando neles. E com eles faço literatura. Mas seus pensamentos são fortes. As nuvens brancas se transformaram em nuvens negras, e chove, com trovoes e relâmpagos, e você fica toda molhada. Você não é dona deles. Eles mandam em você. Você fica “possuída” por eles...
                Sua descrição da metamorfose pela qual você passa me fez lembrar aquele personagem de um seriado, o Hulk. Normalmente homem simpático e franzino, de repente, quando provocado, ele se transformava num outro, um gigante. Ninguém diria que se tratava da mesma pessoa. Os olhos ficavam estranhos, vidrados, o corpo inchava com músculos descomunais, a pele verdejava, as roupas se rasgavam e ele ficava possuído por uma força e uma fúria incontroláveis. Ainda bem que não é isso que acontece com você, pois, se fosse, sua despesa com o alfaiate seria enorme...
                Tudo acontece repentinamente. O conselho de contar até dez não serve para nada. Antes de começar a contagem, você já está possuído. Tudo em você fica diferente, e os outros o olham com espanto. Mas esse outro em que você se transformou nem liga. Não há palavra que o segure. É como se fosse uma ejaculação de fúria. Aí, passado o surto, o Outro deixa a cena. Some. E você volta, coberto de vergonha, para o corpo de onde o Outro o havia expulsado. É hora de tentar consertar os estragos.
                Você sabe pedir desculpas. Isso é uma virtude. Mas  também sabe que há coisas que não podem ser consertadas. Pode ser que a pessoa magoada pelo Hulk o desculpe, mas é impossível que ela se esqueça do que ela viu. Ela viu o Outro que mora em você e de que ninguém gosta. Nem mesmo você.
                Seu horror é triplo. Primeiro, o horror por aquilo que o Outro, com a sua cara, faz.
                Segundo, o horror de que os outros o tenham visto daquele jeito monstruoso. Você deve conhecer um brinquedinho, não sei o nome em português. Em inglês é Jack-in-box. É um cubo de metal com uma manivela. O cubo metálico é bonitinho por fora. Aí, a gente vai rodando a manivela e, de repente, a tampa se abre e de dentro do cubo salta uma cabeça grotesca que nos dá um susto. Vendo o cubo fechado, ninguém suspeitaria da cabeça assustadora que está dentro dele. Pois você é parecido com o Jack-in-the-box. Todo mundo fica com medo de rodar a manivela.
                Terceiro, o simples horror de que more em você um hóspede desconhecido que está alem do seu controle racional. Se conselhos racionais valessem alguma coisa, eu lhe daria vários, e até poderia escrever um livro de autoajuda sobre o assunto. Mas, quando o hóspede desconhecido entra em cena, já é tarde demais para fazer qualquer coisa. Até mesmo os anjos da guarda fogem...
                Com base nos meus conhecimentos híbridos de psicanálise e magia, meu diagnóstico é o seguinte: você sofre de uma possessão demoníaca intermitente. Imagino seu sorriso de incredulidade ao ler isso. Como é possível que um homem como o Rubem Alves ainda acredite em demônios? Demônios são fantasias do imaginário religioso...
                De fato, demônios são fantasias do imaginário religioso. As religiões os pintaram como seres repulsivos, com cara de bode, chifres na cabeça, peludos, com rabo, masculinos, genitais em forquilha para penetrar dois orifícios ao mesmo tempo e especialistas em soltar ventilações sulfúricas malcheirosas pelas ventas e partes inferiores. Invisíveis, vagam pelos espaços vazios à procura de ninhos onde botar seus ovos.
                Escolhida a vitima, eles se aproximam e por meio de truques sedutores tentam entrar na casa onde desejam se aninhar. Se o dono da casa é bobo e acredita na conversa deles, entram, tomam posse do espaço e não saem pacificamente.
                Você já deve ter ouvido falar: “ele ficou fora de si”. Se ficou fora de si, quem é que ficou dentro de si? Só pode ser um Outro que não ele. Então, naquele momento, o corpo já não é posse dele. Está sob controle de um Outro, que faz coisas que ele jamais faria.
                Nos tribunais se usa falar em “privação dos sentidos” para se referir a uma pessoa que não é responsável por aquilo que faz. É a forma forense de se referir ao “ficar fora de si”, enquanto “um outro” fica dentro de si. Isso quer dizer que a própria linguagem dos juízes e advogados reconhecessem como real essa situação em que o corpo fica possuído por uma entidade estranha. Assim, se o meu corpo cometeu um crime sob a condição de “privação dos sentidos”, isto é, enquanto estava possuído por um estranho, eu não o cometi. Não sou culpado, não posso ser condenado.
                Não descarte os demônios com seu sorriso zombeteiro. Pode ser que o nome e as imagens não sirvam mais. Mas  a “coisa” continua a existir com outros nomes. É como um vírus de computador – ele entra sem permissão e faz a maior confusão. Pois assim são os demônios...
                Vírus, demônios, dois nomes diferentes para a mesma coisa. Com uma diferença: é mais fácil se livrar do vírus que dos demônios.

LOBISOMEM

                Um jeito de compreender o que é possessão demoníaca é a lenda do lobisomem. Ela fala de um homem bom e tranquilo dentro do qual mora um lobo. Mas o lobo fica trancado em uma jaula. Aparece vez por outra, quando, por razoes que não se sabe, a jaula se abre e ele sai. A lenda diz que ele sai em noites de lua cheia. Mas acho que não é bem assim. Ele sai – não se sabe quando nem por que. Aí, toma conta do corpo. E o homem bom e tranquilo, ele o tranca na jaula. Livre, ele é só fúria incontrolável. Esgotada sua fúria, retorna à sua morada, dentro da jaula, e o homem bom e tranquilo retorna ao seu lugar. Os dois nunca se encontram. Nem mesmo se conhecem.
                É lenda, mas é verdade. Isso tem um nome na linguagem da psicanálise. É chamado de “núcleo psicótico”. Em linguagem comum: dentro de todo mundo mora um doido. Em alguns, a jaula é fechada a sete chaves e o bicho não sai. Mas, em outros, a fechadura é fraca e ele sai. Os religiosos dão a isso o nome de “possessão demoníaca”. Os evangelhos falam de um homem assim. Era tão forte que nem mesmo as correntes mais grossas conseguiam conte-lo. O ruim da expressão “possessão demoníaca” é que ela sugere que o bicho é um invasor que em de fora. A psicanálise diz, ao contrário, que ele não é um invasor, mas um morador permanente do corpo, parte da gente.
                Aí tomam-se as providencias para eliminar o demônio. Levam o homem a um psicólogo, psicanalista ou psiquiatra, nomes modernos para oficio de exorcista. Mas o exorcista fica perdido, porque o homem que está diante dele é tão manso, tão bom, fala de literatura, de arte, de crianças...
                Ele nada sabe sobre o lobo. Não é ele. É um outro. O lobo está dormindo em sua cela...

TEXTO RETIRADO DO LIVRO "SOBRE DEMÔNIOS E PECADOS" DE RUBEM ALVES, PAGINA 11.

terça-feira, 8 de maio de 2012

DESEJO DE APRENDER...




DO DESEJO DE APRENDER

As crianças gostam de aprender. O que não quer dizer que elas gostem das escolas. As escolas são, frequentemente, lugares onde elas são obrigadas a aprender, sob pena de punições, aquilo que elas não querem aprender. Por isso, elas e nós nos esquecemos rapidamente do que tentaram nos ensinar contra a nossa vontade.
Sabedoria de um velho ditado caipira: “É fácil levar a égua até o meio do ribeirão. O difícil é obrigar a égua a beber a água”. A gente aprende aquilo que deseja aprender. É o desejo que desperta em nós a inteligência. O filósofo Aristóteles disse: “todos os homens têm, naturalmente, o desejo de aprender”. Ele estava errado. Vou corrigi-lo: “Todos os homens, enquanto crianças, têm naturalmente o desejo de aprender”. O que dá às crianças desejo de aprender? Primeiro é a curiosidade. As crianças acham as coisas do mundo muito interessantes e querem saber por que elas são do jeito que são. Pra que serve isso? Pra nada. Apenas pelo prazer: matar a curiosidade. Depois elas querem aprender para adquirir competências. A criança quer aprender a andar de bicicleta, a descascar laranja, a abrir a porta com a chave – para ter o delicioso sentimento: “Eu posso!”. É um sentimento de poder. E, por fim, elas querem aprender a brincar. Controlar a bola, armar quebra-cabeças, jogar damas...
Adultos, continuam vivos em nós os mesmos impulsos que levam as crianças a aprender. A menos que os matemos...

TEXTO RETIRADO DO LIVRO: PENSAMENTOS QUE PENSO QUANDO NÃO ESTOU PENSANDO, DE RUBEM ALVES, PAGINA 82

As razões do amor...



AS RAZÕES DO AMOR-
 RUBEM ALVES


"Os místicos e os apaixonados concordam em que o amor não tem razões. Angelus Silésius, místico medieval, disse que ele é como a rosa : "A rosa não tem"porquês". Ela floresce porque floresce." Drummond repetiu a mesma coisa no seu poema As Sem-Razões do Amor. É possível que ele tenha se inspirado nestes versos mesmo sem nunca os ter lido, pois as coisas do amor circulam com o vento. 


"Eu te amo porque te amo..." - sem razões... "Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo." Meu amor independe do que me fazes. Não cresce do que me dás. Se fosse assim ele flutuaria ao sabor dos teus gestos. Teria razões e explicações. Se um dia teus 
gestos de amante me faltassem, ele morreria como a flor arrancada da terra. "Amor é estado de graça e com amor não se paga." Nada mais falso do que o ditado popular que afirma que "amor com amor se paga". O amor não é regido pela lógica das trocas comerciais. Nada te devo. Nada me deves. Como a rosa que floresce porque floresce, eu te amo porque te amo. 


"Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a 
regulamentos vários... Amor não se troca... Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo..." Drummond tinha de estar apaixonado ao escrever estes versos. Só os apaixonados acreditam que o amor seja assim, tão sem razões. Mas eu, talvez por não estar apaixonado (o que é uma pena...), suspeito que o coração tenha regulamentos e dicionários, e Pascal me apoiaria, pois foi ele quem disse que "o coração tem razões que a própria razão desconhece". Não é que 
faltem razões ao coração, mas que suas razões estão escritas numa língua que desconhecemos. 
Destas razões escritas em língua estranha o próprio Drummond tinha conhecimento, e se perguntava: "Como decifrar pictogramas de há 10 mil anos se nem sei decifrar minha escrita interior? A verdade essencial é o desconhecido que me habita e a cada amanhecer me dá um soco." O amor será isto: um soco que o desconhecido me dá? 


Ao apaixonado a decifração desta língua está proibida, pois se ele a entender, o amor se irá. Como na história de Barba Azul: se a porta proibida for aberta, a felicidade estará perdida. Foi assim que o paraíso se perdeu: quando o amor - frágil bolha de sabão - não contente com sua felicidade inconsciente, se deixou morder pelo desejo de saber. O amor não sabia que sua felicidade só pode existir na ignorância das suas razões. Kierkegaard comentava o absurdo de se pedir aos amantes explicações para o seu amor. A esta pergunta eles só possuem uma resposta: o silêncio. Mas que se lhes peça simplesmente falar sobre o seu amor - sem explicar. E eles falarão por dias, sem parar... Mas - eu já disse - não estou apaixonado. Olho para o amor com olhos de suspeita, curiosos. Quero decifrar sua língua desconhecida. Procuro, ao contrário do Drummond, as cem razões do amor... 


Vou a Santo Agostinho, em busca de sua sabedoria. Releio as Confissões, texto de um velho que meditava sobre o amor sem estar apaixonado. Possivelmente aí se encontre a análise mais penetrante das razões do amor jamais escrita. E me defronto com a pergunta que nenhum apaixonado poderia jamais fazer: "Que é que eu amo quando amo o meu Deus?" Imaginem que um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: "Que é que eu amo quando te amo?" Seria, talvez, o fim de uma estória de amor. Pois esta pergunta revela um segredo que nenhum amante pode suportar: que ao amar a amada o amante está amando uma outra coisa que não é ela. Nas 
palavras de Hermann Hesse, "o que amamos é sempre um símbolo". Daí, conclui ele, a impossibilidade de fixar o seu amor em qualquer coisa sobre a terra..."

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Senhor Bispo...



Dirijo-me a V. Revma, a fim de solicitar esclarecimento sobre um problema tecnológico. Recebi um e-mail de uma mulher que desconheço. Ela o enviou após ter lido um artigo meu sobre o batizado da minha neta Mariana, do qual o celebrante não autorizado fui eu. Disse-me que tem um filhinho e é seu desejo batiza-lo. Mas o sacerdote lhe nega o batismo, sob a alegação de que ela e o pai da criança não são casados na Igreja. A criança, assim, está com a alma em perigo por um pecado que não cometeu.
Sempre pensei que, segundo a teologia da Igreja, o fato de uma mulher ficar grávida, casada ou não casada, é sinal de que Deus deseja a dita gravidez. Pois, se ele não a desejasse, a gravidez não aconteceria. É somente isso que explica a interdição do aborto em qualquer situação, inclusive nos casos em que o feto não tem cérebro. O senhor haverá de convir comigo que existiria uma contradição na mente divina se Deus aprovasse a gravidez e, ao mesmo tempo, ordenasse à instituição que o representa que lhe negasse o batismo.
Imaginemos uma mulher e seu companheiro. Eles muito se amam, mas não são casados na Igreja. Muito embora os textos sagrados digam que Deus é amor, e o apóstolo Paulo tenha dito que o amor é a maior de todas as virtudes, o fato é num estado pecaminoso de concubinato. Ouvi de um padre, numa homilia de casamento, a seguinte afirmação: “Não é o vosso amor que faz o casamento. É o contrato...”. Os companheiros que se amam sem contrato, assim, estão em pecado e impedidos de batizar seu filhinho. Mas aí o pai da criança morre. Agora, graças à morte do marido, a mulher não mais se encontra numa relação pecaminosa. A criança pode então ser batizada. Se o companheiro da mulher que me enviou a carta morrer, o filho dela poderá ser batizado?
De todos os santos, o de minha devoção mais forte é o santo Expedito. Ele tem a palavra “hoje” escrita em sua cruz. Santo Expedito não deia para amanhã. O milagre acontece no mesmo dia. Pois contou-me uma piedosa senhora sobre um milagre de santo Expedito. Uma amiga sua sofria muito nas mãos de um marido cruel. Ela orou a santo Expedito e seu pedido foi atendido no mesmo dia. Perguntei:
- Sofreu um acidente e morreu?
- Não. Ela respondeu. – Ele se enforcou...
Trata-se do primeiro suicídio milagroso de que há registro. Pergunto: seria adequado à mulher que me escreveu apelar para santo Expedito? Quem é que o santo mataria? O marido ou o padre? Se ele me pedisse conselho, eu diria: “mate o padre...”.
Por favor, senhor bispo, instrua pastoralmente seus padres, informando-os de que todas as crianças vão pra o céu, mesmo sem batismo, não importando que seus pais sejam católicos, protestantes, hinduístas, espíritas, umbandistas, do candomblé, budistas, xintoístas, judeus, maometanos, ateus e quantas religiões haja. Dominus vosbicum.

Fraternalmente, Rubem Alves.

TEXTO RETIRADO DO LIVRO: "O DEUS QUE CONHEÇO", RUBEM ALVES, PAGINA 92.

domingo, 6 de maio de 2012

O Grande Mistério...


O grande mistério

Ah! Tanta gente quer saber se acredito em Deus! Mas eu não entendo a pergunta, porque não sei o que elas querem dizer com essa palavra “acreditar”. E se eu respondesse elas receberiam apenas uma mentira, embora eu tivesse falado a verdade.
As palavras são enganosas... Palavras são bolsos, bolsos vazios. À medida que a gente vai vivendo, vai pondo coisas dentro do bolso. O bolso que tem o nome de Deus fica cheio de quinquilharias que catamos pela vida.
Assim, quando falamos sobre Deus, não falamos sobre Deus. Falamos é sobre as coisas que guardamos dentro desse bolso. Então, se eu respondesse “Acredito em Deus”, a outra pessoa se enganaria pensando que dentro do meu bolso eu guardo as mesmas coias que ela guarda no seu. E concluiria mais: que sou uma boa pessoa. Mas, se eu tivesse dito que não acredito em Deus, ela concluiria que não sou uma boa pessoa.
Uma sugestão: vejam o filme “A língua das mariposas”. Ele se passa no fim da Guerra Civil Espanhola, quando o ditador se pôs a matar seus inimigos derrotados. Não importava que nada tivessem feito, que não tivessem disparado um tiro. Eles eram culpados de pensar diferente. Os soldados haviam chegado a uma aldeia e todos os diferentes (eles não iam à missa) estavam sendo presos para o fuzilamento. A aldeia inteira assistia às prisões daqueles que até a véspera tinham sido seus inimigos. O padre sabia e, ao lado dos fuzis, se preparava para a absolvição dos pecados... e a acusação suprema de impiedade que era lançada contra os caminhantes, “dali a pouco cadáveres”, era: “Ateus!” Mas o que importava mesmo era que o generalíssimo Franco acreditava em Deus e era católico de comunhão diária... Muitas pessoas guardam mortes no bolso que tem o nome de Deus.
“Acreditar”, no sentido comum que as religiões dão a essa palavra, refere-se a entidades que ninguém jamais viu, tais como anjos, pecados, santos, milagres, castigos divinos, inferno, céu, purgatório... No meu bolso sagrado, “acreditar” é palavra que não entra. Ele está cheio é de palavras que têm a ver com amor, mesmo que o objeto do meu amor não exista. Lembro-me das palavras de Válery: “Que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?” Muitas coisas que não existem têm poder...
Eu amo a beleza da natureza, da música de um poema. Amo a beleza das palavras de amor que os apaixonados trocam. Uma criança adormecida é, para mim, uma revelação, uma ocasião de espanto. Acho que Bachelard adoraria nos mesmos altares que eu: “A inquietação que temos pela criança”, ele escreveu, “sustenta uma coragem invencível”. Uma criança é um pequeno deus.
Para mim a beleza é sagrada porque, ao experimentá-la, eu me sinto possuído pelo Grande Mistério que nos cerca. Sinto-me como uma aranha que constrói sua teia sobre o abismo. O abismo está à volta de nós, o abismo está dentro de nós. Os fios da minha teia, eu os tiro de dentro de mim, são partes do meu corpo. Teço minha teia com poesia e música.
De Deus só temos a suspeita. A beleza é a sombra de Deus. Sobre ele – ou ela – deve-se calar, muito embora as religiões sejam por demais tagarelas a seu respeito, havendo mesmo algumas que se acreditam possuidoras do monopólio das palavras certas – a que dão o nome de dogmas.
Estou de acordo com Alberto Caeiro:

Pensa em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos.

Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

E de acordo também estou com Walt Whitman:

E à raça humana eu digo:
- Não seja curiosa a respeito de Deus,
Pois eu sou curioso sobre todas as coisas e não sou curioso a respeito de Deus.
(não há palavra capaz de dizer quanto eu me sinto em paz perante Deus e a morte)
Escuto e vejo Deus em todos os objetos,
Embora de Deus mesmo eu não entenda nem um pouquinho.

Já percebi
Que estar com aqueles de quem eu gosto
É quanto basta.


Buber concordaria. Estar junto é divino. Deus mora nos intervalos entre as pessoas que se amam.
Eu nem tenho mais o bolso com o nome Deus. Esse nome se presta a muitas confusões. Muitos bolsos com esse nome estão cheios de escorpiões e vinganças.
Amo a sombra de Deus. Mas ele mesmo nunca vi. Sou um ser humano limitado. Só sou capaz de amar as coias que vejo, ouço, abraço, beijo...
Tenho um bolso com o nome de O Grande Mistério. Mas não sei o que está dentro dele. Por vezes suspeito que é o meu coração.

TEXTO RETIRADO DO LIVRO: “O DEUS QUE CONHEÇO” DE RUBEM ALVES, PAGINA 88.

sábado, 5 de maio de 2012

A praga




A praga

É bom atentar para o que o papa diz. Porta-voz de Deus na terra, ele só pensa pensamentos divinos. Nós, homens tolos, gastamos o tempo pensando sobre coisas sem importância, tais como o efeito estufa e a possibilidade do fim do mundo. O papa vai direto ao que é essencial: “O segundo casamento é uma praga!”
Está certo. O casamento não pertence à ordem abençoada do paraíso. No paraíso não havia casamento. Na Bíblia não há indicação alguma de que as relações amorosas entre Adão e Eva tenham sido precedidas pelo cerimonial a que hoje se dá o nome de casamento – o Criador, celebrante, Adão e Eva nus, de pé, diante de uma assembleia de animais, tudo terminando com as palavras sacramentais: “E eu, Jeová, vos declaro marido e mulher. Aquilo que eu ajuntei os homens não podem separar...”
Os casamentos, o primeiro, o segundo, o terceiro, pertencem à ordem maldita, caída, praguejada, pós-paraíso. Nessa ordem não se pode confiar no amor. Por isso se inventou o casamento, esse contrato de prestação de serviços entre marido e mulher, testemunhado por padrinhos, cuja função é, no caso de algum dos conjugues não cumprir o contrato , obrigatório a cumprir.
Foi um padre que me ensinou isso. Ele celebrava o casamento. E foi isso que disse aos noivos: “O que vos une não é o amor. O que vos uni é o contrato”. Aprendi então que o casamento não é uma celebração de amor. É o estabelecimento de direitos e deveres. Até as relações sexuais são obrigações que devem ser cumpridas.
Agora imaginem um homem e uma mulher que muito se amam: são ternos, amigos, fazem amor, geram filhos. Mas, segundo a Igreja, estão em estado de pecado: falta ao se relacionamento o selo eclesiástico legitimador. Ele, divorciado da antiga esposa, não pode se casar de novo porque a igreja proíbe a praga do segundo casamento. Aí os dois, já no fim da vida, são obrigados a se separar para participar da eucaristia: cada um para um lado, adeus aos gestos de ternura... agora está tudo nos conformes. Porque Deus não enxerga o amor. Ele só vê o selo eclesial.
O papa está certo. O segundo casamento é uma praga. Eu, como já disse, acho que todos são uma praga, por não ser da ordem paradisíaca, mas da ordem da maldição. O símbolo da maldição está na palavra “conjúgio” (casamento), do latin con = junto e jugum = canga. Canga, aquela peça pesada de madeira  que une dois bois. Eles não querem estar juntos. Mas a canga os obriga, sob pena do ferrão...
Porque o segundo casamento é uma praga? Porque, para havê-lo, é preciso que o primeiro seja anulado pelo divórcio. Mas, se a Igreja admitir a anulação do primeiro casamento, terá de admitir também que o sacramento que o realizou não é aquilo que ela afirma ser: um ato realizado pelo próprio Deus.
Permitir o divórcio equivale a dizer que o sacramento é uma balela. Donde a Igreja é uma balela... Com o divórcio, ela seria rebaixada de seu lugar infalível e passaria a ser apenas mais uma instituição falível entre outras. A Igreja não admite o divórcio não por amor à família. Mas para manter-se divina...
A Igreja, sábia, tratou de livrar seus funcionários da maldição do amor. Proibiu-os de se casar. Livres da maldição do casamento, os sacerdotes têm a suprema felicidade de noites de solidão, sem conversas, sem abraços nem beijos. Estão livres da praga...

TEXTO RETIRADO DO LIVRO: “O DEUS QUE CONHEÇO”, DE RUBEM ALVES, PAGINA 85.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Seu destino é o sucesso...




Seu destino é o sucesso...

O Antigo Testamento é cortado por uma briga entre dois grupos: os profetas e os falsos profetas. Os profetas viam as feridas e espremiam seus pus fedorento. Os falsos profetas viam as feridas, mas sabiam que os feridentos não gostavam de mostra-las. Assim em vez de espremer as feridas, besuntavam-nas com mel perfumado e diziam: “Está tudo bem!” O povo amava os falsos profetas e odiava os profetas.
Os falsos profetas continuam em pleno exercício. Escrevem livros, anunciam as ilusões do coração como se fossem verdades e estão sempre na lista dos Best-sellers.
Um deles me disse “o meu destino é ser vitorioso”. Que bom! Isso está predeterminado desde antes do meu nascimento. Nasci de uma vitória numa maratona –mais de duzentos milhões de espermatozoides correram. Um só foi vitorioso: aquele de que nasci! E essa verdade vale para todos, os parias, os refugiados, os marginais, os mendigos, os criminosos, os escravos, porque eles, como eu nasceram da vitória de um espermatozoide.
Você é insubstituível! Sou? Isso faz bem ao meu coração!...
Aí me lembro das palavras de um profeta de verdade, Fernando Pessoa, que nunca foi Best-seller:
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para os outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

Um outro anunciava: “O seu lugar é o pódio”. Que maravilhosa mensagem a ser transmitida a todos os atletas das Olimpíadas! Cada um deles está destinado ao pódio! Pódios para todos! Todas as competições deverão terminar empatadas!
A capa do livro diz que não devo desistir dos meus sonhos. Mas eu já sonhei tanta coisa boba e impossível! Sonhei que seria um pianista e trabalhei muito para sê-lo... mas não adianta que gato sonhe voar. Um gato jamais será pássaro. Não seria mais sábio que ele sonhasse com ratos gordos?
Os terroristas não desistem dos seus sonhos. Sonham que vão se explodir para matar os inimigos. E se explodem, realizando seu sonho...
Outdoor religioso dizia: “Você nasceu para vencer”. A religião garante sucesso. O empresário que tem Jesus no coração sempre vence. Jesus no coração é seguro contra falência... Jesus morreu na cruz para nos tornar empresários bem-sucedidos. E, se você não é um vitorioso, saiba que a culpa é sua: não tem Jesus no coração... O que é vencer na vida? Mike Tyson foi um vitorioso. Eu amo aqueles que, por amor a verdade, aceitam a derrota.
Os religiosos invocam Deus para realizar seus desejos. Agora quem faz milagres é a literatura de autoajuda. A nova religião.
O Segredo é simples. No universo tudo acontece pelo o poder da atração. É a lei da física. Tudo é imã, tudo atrai e é atraído. Nós também somos ímãs. O que temos é aquilo que atraímos. Atraímos dinheiro ou pobreza, saúde ou câncer, amor ou solidão.
A questão é atrair as coisas certas. O pensamento positivo faz atrair as coisas certas. E o milagre acontece! Como atrair as coisas certas? Compre o livro O segredo que você saberá. É mesmo possível que você já o tenha comprado e já esteja a caminho do sucesso...

TEXTO RETIRADO DO LIVRO:  O DEUS QUE CONHEÇO, DE RUBEM ALVES, PAGINA 86

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Será que vou rezar?

Para aqueles que pensam que sabem comemorar, um evento, principalmente se for o Natal, talvez seria bom que pudéssemos avaliar isso antes das próximas comemorações que estão para chegar.. 






Será que vou rezar?

Sou um admirador de Gandhi. Cheguei mesmo a escrever um livro sobre ele. Estou planejando convocar os amigos para uma homenagem póstuma a esse grande líder pacifista e vegetariano. Pensei que uma boa maneira de homenageá-lo seria um evento numa churrascaria – todo mundo gosta de churrasco – , um delicado rodízio com carnes variadas, picanhas, filés, costelas, cupins, fraldinhas, linguiças, salsichas, paios, galetos e chope. O grande líder merece ser lembrado e festejado com muita comilança e barriga cheia!
Eu não fiquei doido. O que fiz foi usar de um artifício lógico chamado reductio ad absurdum, que consiste no seguinte: para provar a verdade de uma proposição, eu mostro os absurdos que se seguiriam se o seu contrário, e não ela, fosse verdadeiro. Demonstrei o absurdo de celebrar um líder vegetariano de hábitos frugais com um churrasco.
Uma homenagem tem de estar em harmonia com a pessoa homenageada para torná-la presente entre aqueles que a celebram. Uma refeição, sim. Mas pouca comida. Comer pouco é uma forma de demonstrar nosso respeito pela natureza. Alface, cenoura, azeitonas, Paes – e água.
Escrevo com antecedência, hoje, 27 de novembro,  quase um mês antes, para que vocês celebrem direito. A celebração há de trazer de novo à memória o evento celebrado.
É uma cena: numa estrebaria, uma criancinha acaba de nascer. Sua mãe a colocou numa manjedoura, cocho onde se põe comida para animais. As vacas mastigam sem parar, ruminando. Ouve-se um galo que canta e os violinos dos grilos – música suave ... No meio dos animais tudo é tranquilo. Os campos estão cobertos de vagalumes que piscam chamados amor. E no céu brilha uma estrela diferente. Que estará anunciando suas cores? O nascimento de um Deus?
É. O nascimento de um Deus. Deus é uma criança. O nascimento do Deus criança só pode ser celebrado com coisas mansas. Mansas e pobres. Os pobres, em seu despojamento, devem poder celebrar. Não é preciso muito.
Um poema se lê. Alberto Caeiro escreveu um poema que faria José e Maria, os pais do menininho, rir de felicidade:

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino
[...]
Tinha fugido do céu.


Longo, merece ser lido inteiro, bem devagar...
Uma canção que se canta. Das cantigas. Tem de ser das antigas. Para convocar a saudade. É a saudade que traz para dentro da sala a cena que aconteceu longe. Sem saudade o milagre não acontece.
Algo para comer. O que é que José e Maria teriam comido naquela noite? Um pedaço de queijo,nozes, vinho, pão velho, uma caneca de leite tirado na hora. E deram graças a Deus.
E é preciso que se fale em voz baixa. Para não acordar a criança.
Naquela mesma noite, havia uma outra celebração no palácio de Herodes, o cruel. Ele tinha medo das crianças e mataria todas se assim o desejasse. A mesa do banquete estava posta: leitões assados, linguiças, bolos e muito vinho... os músicos tocavam, as dançarinas rodopiavam. Grande era a orgia.
É. Cada um celebra o que escolhe. Acho que vou fazer uma sopa de fubá, que tomarei com pimenta e torradas. E lerei poemas e ouvirei música. E farei silêncio quando chegar a meia-noite, e quem sabe rezarei.

TEXTO RETIRADO DO LIVRO “O DEUS QUE CONHEÇO” DE RUBEM ALVES. PAGINA 79.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Sobre deuses e rezas...



Sobre deuses e rezas


“ Os homens não querem Deus. O que eles querem é o milagre”
Dostoiévski

“Deus nos deu asas. As religiões inventaram as gaiolas”
Rubem Alves

Perdida no meio dos viajantes que enchiam o aeroporto, ela era uma figura destoante. A roupa largada, os passos pesados, uma sacola de plástico pendurada numa das mãos – esses sinais diziam que ela não mais ligava para sua condição de mulher: não se importava com ser bonita. Pensei mesmo que se tratava de uma freira. Seu comportamento era curioso: dirigia-se às pessoas, falava por alguns momentos e, como não lhe prestassem atenção, procurava outras com que falar. Quando vi que tinha uma Bíblia na Mao, compreendi tudo: ela se imaginava possuidora de conhecimentos sobre Deus que os outros não possuíam e tratava de salvar-lhes a alma.
Meu caminho me obrigou a passar perto dela – e, quando olhei de perto para o seu rosto, levei um susto: eu o reconheci de outros tempos, quando era uma moça bonita que ria e brincava e para quem olhávamos com olhares de cobiça.
Não resisti e chamei alto o seu nome. Ela se espantou, olhou-me com um olhar interrogativo, não me reconheceu. Com razão. Os muitos anos deixam suas marcas no rosto.
 - Eu sou Rubem Alves!
Seu rosto se iluminou pela lembrança, sorriu, e pensei que poderíamos nos assentar e conversar sobre a vida. Mas sua preocupação com a minha alma não permitia essas perdas de tempo com conversa fiada. E ela tratou de verificar se o meu passaporte para a eternidade estava em ordem:
- Você continua firme na fé?
- Mas de jeito nenhum. Então você deixou de ler a Bíblia? Pois lá está dito que Deus é espírito, vento impetuoso que sopra em todo lugar, o mesmo vento que ele soprou dentro da gente para que respirássemos, fossemos leves e pudéssemos voar. Quem está no vento não pode estar firme. Firmes são as pedras, as tartarugas, as âncoras. Você já viu uma pipa firme? Pipa firme é pipa no chão, não voa. Pois eu estou mais é como urubu, lá nas alturas, flutuando ao sabor do imprevisível  Vento Sagrado, sem firmeza alguma, rodando em largos círculos.
Ela ficou perdida – acho que nunca havia ouvido resposta tão estranha. Mudou de tática e tentou pegar minha alma do outro lado. Desatou a falar de Deus, informou-me que ele é maravilhoso, etc. etc. etc., como se estivesse no púlpito em celebração de domingo.
 -  Acho que quem não está firme em Deus é você. Olha, passei a noite toda respirando, estou respirando desde que acordei, e juro que agora é a primeira vez que penso no ar. Não pensei nem falei no ar porque somos bons amigos. Ele entra e sai do meu corpo quando quer, sem pedir licença. Mas a história seria outra se eu estivesse com asma, os brônquios apertados, o ar sem jeito e entrar, ou como naquele anúncio antigo de xarope Bromil, o coitado do homem sufocado por uma mordaça, gritando pelo ar que lhe faltava. Por via das dúvidas, até andaria com uma garrafa de oxigênio na bagagem, para qualquer emergência.
E continuei:
 - Pois Deus é como o ar. Quando a gente está em boas relações com ele, não é preciso falar. Mas, quando a gente está atacado de asma, então é preciso ficar gritando pelo nome dele. Do jeito como o asmático invoca o ar. Quem fala com Deus o tempo todo é asmático espiritual. E é por isso que anda sempre com Deus engarrafado na Bíblia e em outros livros e coisas de função parecida. Só que o vento não pode ser engarrafado.
Aí  ela viu que minha alma estava perdida mesmo e, como consolo, fez um sinal de adeus e disse que oraria muito por mim. Então eu protestei, implorei que não fizesse. Disse-lhe que eu tinha medo de que Deus ficasse ofendido. Pois há rezas e orações que são ofensas. É óbvio: se vou lá, bater às portas de Deus, pedindo que ele tenha dó de alguém, estou lhe imputando duas imperfeições que, se fosse comigo, me deixariam muito bravo.
Primeiro, estou dizendo que não acredito no amor dele. Deve ser meio fraquinho, sem iniciativa, preguiçoso, à espera do meu cutucão. Se eu não der a minha cutucada, Deus não se mexe. E isso não é coisa de ofender Deus? Segundo, estou sugerindo que ele deve andar meio esquecido, desmemoriado, necessitando de um secretário que lhe lembre suas obrigações. E trato de, diariamente, apresentar-lhe a sua agenda de trabalho. Mas está lá, nos salmos e nos evangelhos, que Deus sabe tudo antes que a gente fale qualquer coisa. Ora, se a gente fica no falatório, é porque não acredita nisso. Não acredito em oração em que a gente fala e Deus escuta. Acredito mesmo é na oração em que a gente fica quieto para ouvir a voz que se faz ouvir no meio do silêncio.
Voltei à minha amiga:
- Veja você. Tenho um filho que estudava longe. Eu gostava dele. Ele gostava de mim. De vez em quando a gente se falava ao telefone. E o dinheiro da mesada ia sempre, com ou sem telefonema. Agora imagine: de repente começo a receber telefonemas dele três vezes por dia e mensagens por sedex, cartas e telegramas louvando o meu amor, agradecendo a minha generosidade... Você acha que isso me faria feliz? De jeito nenhum. Concluiria que o meu pobre filho havia endoidecido e estava acometido de um terrível medo de que eu o abandonasse. Pois é assim mesmo com Deus: quem fica o dia inteiro atrás dele, com falatório, é porque desconfia dele. Mas o pior é o gosto estético que assim se imputa a Deus. Uma pessoa que gosta de passar o dia inteiro ouvindo os outros repetir as mesmas coias, as mesmas palavras, as mesmas rezas, pela eternidade afora, não deve ser muito boa da cabeça. Para mim isso é o inferno. Quem reza demais acha que Deus não funciona bem da cabeça. Acho que ele ficaria mais feliz se, em vez do meu falatório, eu lhe oferecesse uma sonata de Mozart ou um poema da Adélia...
Mas aí o auto-falante chamou meu voo, tive de me despedir, e imagino que ela tenha ficado aflita, temerosa de que Deus derrubasse o meu avião com um raio. Mal sabia ela que Deus nem mesmo havia ouvido a nossa conversa, pois, cansado das doidices dos adultos, ele foge sempre que v]e dois deles conversando e se esconde, disfarçado de criança.

TEXTO RETIRADO DO LIVRO “O DEUS QUE CONHEÇO” DE RUBEM ALVES, PAG 76.