sábado, 10 de março de 2012

Dor-de-idéia



Dor-de-idéia

Você está com do de dente. O dentista examina o dente e lhe diz que não tem jeito. A solução é arrancar o dente. Anestesia e boticão, o dente é arrancado. A dor desaparece. Você deixa de sofrer. Esse é um paradigma de como são resolvidos os problemas que têm a ver com cojisas concretas: a lâmpada que queimou, o ralo que entupiu, a unha que encravou, o motor que fundiu, a perna que quebrou: são as dores-de-coisaas. Dores-de-coisas se resolvem tecnicamente, cientificamente. A coisa fica diferente quando a dor que você tem é uma dor-de-idéia. Dor-de-idéia dói muito. São dores-de-idéia a ideia de perder o emprego, a ideia de ser feio, a ideia de ser burro, a ideia de que o filho vai morrer num desastre, a ideia de que Deus vai mandá-lo para o inferno, a ideia de que quem você ama vai traí-lo. Dores-de-idéia são terríveis: causam ansiedade, pânico, insônia, diarreia.
Virou moda falar em realidade virtual, com coisa inventada por computadores e eletrônica. Mas ela é velhíssima. Apareceu com o primeiro pensamento. Ideias são realidades virtuais. Realidade virtual é uma coisa que parece ser mas não é. Se parece ser mas não é deve ser inofensiva. Errado. As realidades virtuais produzem dor-de-idéia.
Quando a gente tem uma ideia, sabe que é só ideia, sem substância física, e a desepito disso ela nos causa dor-de-idéia, dizemos que é neurose. O neurótico sabe que o dragão que corre atrás dele é de mentirinha, não existe. Não obstante, essa mentirinha faz a adrenalina esguichar no sangue e o coração dispara.
Liguei a TV. Filme de ficção cientifica. Eu sabia que tudo era mentira. Aquelas coisas não existiam como realidade. Tinham sido produzidas num estúdio, diante de uma câmera. Mas eu comecei a sofrer de dor-de-idéia. Uma terrível ansiedade: “Meu Deus, o escorpião negro vai picar a moça”! “Burro! Burro”!, eu me dizia, num esforço de gozar o filme. “É tudo mentira! Ria! Relaxe!”. Inutilmente. Nós, os humanos, temos essa horrível e maravilhosa capacidade de sofrer pelo que não existe. Somos neuróticos.
Quando uma pessoa se sente perseguida pelo mesmo dragão que perseguiu o neurótico, adrenalina no sangue e coração disparado, mas além disso fica toda chamuscada pelo fogo que sai da boca do dragão, dizemos que ela é psicótica.o psicótico não separa o virtual do real. Para ele a ideia é coisa. Pensou, é real.
Porque as dores-de-idéia são tão ou mais dolorosas que as dores-de-coisas, os homens têm estado, desde sempre, procurando técnicas para acabar com elas.
As terapias para cura de dor-de-idéia podem se classificar em dois grupos distintos. No primeiro grupo estão as terapias baseadas na crença de que dor-de-idéia se cura com uma coisa que não é ideia. Chá de hortelã, refresco de maracujá, as variadas misturas preparadas pelo barman, um cigarrinho, maconha, pó branco, os florais de Bach, as poções e os pós sem-conta da farmacologia psiquiátrica, tranquilizantes, antidepressivos, estupidificantes, sonoterapia. Essas entidades não são ideias. São coisas. Coisas para curar ideias.
Os psiquiatras ficarão bravos comigo. Eles têm raiva dos Florais de Bach – que acusam de anticientíficos. Como posso eu colar os seus bioquímicos científicos junto aos Florais de Bach? As receitas são diferentes, os pressupostos são os mesmos: ideia se cura não com ideia, mas com coisa. O fato é que o sonho da psiquiatria é ter uma botica parecida com a botica dos Florais de Bach: líquidos diferentes, em vidrinhos diferentes, possivelmente com cores diferentes, para evitar equívocos, cada um para uma dor-de-idéia. Raiva: líquido verde. Apatia: líquido cizna. Depressão: líquido roxo. Complexo de inferioridade: líquido azul. Medo de impotência: líquido vermelho. Eu acho que as cores variadas podem até influenciar na cura.
O outro grupo acredita diferente: ideia se cura com ideia. Os remédios da psiquiatria são potentes. Eu mesmo já me vali deles, com excelentes resultados. O problema são os efeitos colaterais. É possível que, passado o efeito da droga, voltem as dores-de-idéia. Por vezes, para tirar a dor-de-idéia, a pessoa fica abobalhada. E se o resultado for maravilhoso, e a pessoa ficar totalmente feliz, ela ficará também totalmente idiota. As pessoas totalmente felizes não conseguem pensar pensamentos interessantes. É preciso ter um pouquinho de dor para que o pensamento pense bonito.
(O meu voo estava sendo tranquilo. Aí o telefone tocou. Uma voz: “Má noticia para lhe dar. Das Edições Loyola. O padre Galache morreu”. Uma imensa dor-de-idéia. Sim, porque ao meu redor tudo continua o mesmo. É uma ideia que me dói-dor-de-idéia que não é para ser curada. É para ser sofrida. Saber sofrer é parte da sabedoria de viver. O padre Galache era meu amigo. Editor dos meus livros. Plantarei uma árvore para ele).
Terapias para cura de dor-de-idéia. Rezas: repetição sonambúlica do terço tem o efeito terapêutico de entupir o pensador com palavras sem sentido. Quem reza sonambulicamente não pensa: se não pensa as dores-de-idéia não aparecem. Meditação transcedental. Cantar. Quem canta seus males espanta. Ah! Os maravilhosos efeitos terapêuticos dos “Corais de Bach” (note bem: “Corais” e não “florais”) que ouço para colocar em ordem a alma. Conversa tranquila. Confissão. Magia. Psicanálise, essa “conversa curante”: só se pode chegar às ideias por meio de ideias. Filosofia. Nem toda. Há uma filosofia que me torna pesado. Afundo. É a filosofia acadêmica que se faz profissionalmente. Todos os que estão escrevendo teses de filosofia sofrem de dores-de-idéia. A filosofia acadêmica pode emburrecer. Se houver ocasião, falaremos sobre o assunto. Mas há uma filosofia alegre, que me faz levitar. Quer levitar? Filosofe. Para fazer levitar a filosofia não pode nascer da cabeça. Ela tem de nascer das entranhas. Tem de ser escrita com o sangue. A gente lê e o corpo estremece: ri, espanta-se, tranquiliza-se, assombra-se. Muita filosofia, que no seu nascimento era cosia viva, sangrante, suco do pensador, nos cursos de filosofia se torna “disciplina”, grão duro, sem gosto, a ser moído. O aluno é obrigado a estudar para passar nos exames. Filosofia terapêutica há de ser feita com prazer. Kolakowski, filósofo polonês,  compara o filósofo a um bufão, bobo da corte, cujo ofício é fazer rir. O filosofar amansa as palavras: aquela cachorrada feroz que latia, ameaçava e na deixava dormir se transforma em cachorrada amiga de caudas abanantes. O filosofar ensina a surfar: de repente, a gente se vê deslizando sobre as ondas terríveis das dores-de-ideia. Também serve para por luz no escuro. Quando a luz se acende o medo se vai. Muita dor-de-idéia se deve à falta de luz. Os demônios fogem da luz. Wittgenstein diz que filosofia é contrafeitiço. É uma boa para nos livrar das dores-de-idéia, produtos de feitiçaria: há tantos feiticeiros e feiticeiras soltos por aí, tão bonitos: é só acreditar para ficar enfeitiçado... a filosofia nos torna desconfiados. Quem desconfia não fica enfeitiçado. Palavra de mineiro, pois fica, assim, um convite para brincar de filosofar...

TEXTO RETIRADO DO LIVRO: O AMOR QUE ASCENDE A LUA. RUBEM ALVES

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