Era
uma noite escura, sem lua. Num céu sem lua as estrelas brilham mais. Bem no
meio do céu estava a constelação Órion, o caçador, seu corpo cingido por um
cinturão de três estrelas, as Três Marias, acompanhado dos seus cães, o Cão
Maior e o Cão Menor. Sirius, a mais brilhante de todas as estrelas, brilhava na
cauda do Cão Maior. De um lado, a constelação do Touro, com a estrela Aldebarã.
Mais além as Pléiades, que a Cecília Meireles observava enquanto navegava:
Muitas
velas, muitos remos,
Âncora
é outro falar...
Tempo
que navegaremos não se pode calcular.
Vimos
as Pléiades; vemos agora a Estrela Polar.
Muitas
velas, muitos remos.
Curta
vida. Longo mar...
A viagem
da Cecília chegou ao fim. Agora, eu acho, ela ancorou seu navio nas Pléiades,
ao lado da estrela do Pequeno Príncipe...
As
estrelas são misteriosas. Pascal confessava sentir-se esmagado pelo seu
silêncio. Essas mesmas estrelas que vemos foram vistas por homens e mulheres há
milhares de anos. E elas continuam a brilhar, indiferentes.
Mestre
Benjamin era um contador de estórias. Todos o amavam, especialmente as crianças
que adoravam fazer perguntas. Sabem por quê? Porque, em vez de dar respostas às
perguntas, ele inventava estórias...
Naqueles
tempos antigos as noites eram escuras e silenciosas. Somente as estrelas e a
lua iluminavam os céus. E, na terra, ouvia-se o barulho do vento, o piar das
corujas, o uivo de algum lobo...
De
noite, nas tendas, ardiam as lâmpadas a óleo. Todos se reuniam na tenda do
Mestre Benjamin para ouvir suas estórias.
A tenda
do Mestre Benjamin estava cheia.
Uma
menina que tinha estado a contemplar as estrelas levantou a mão e perguntou:
“Mestre
Benjamin: Foi sempre assim ou as estrelas nasceram? Como foi que o universo
começou?”
Mestre
Benjamin fez silêncio. Seus olhos ficaram semicerrados, como se estivesse
tentando ver algo que ninguém via. Depois de alguns minutos começou a falar.
Sua voz era quase um sussurro.
No
Princípio, antes que qualquer coisa existisse,
Antes
que houvesse o Universo,
O
que havia era a Poesia.
Deus
era Poesia.
A
Poesia era Deus.
Deus
e a Poesia eram a mesma coisa.
E
Deus criou as estrelas para, com elas,
Escrever
seus poemas nos céus...
(Prólogo
do Evangelho de João, paráfrase)
“Os
poetas sabem que tudo começa com a Palavra. Antes da Poesia, o que havia era um
abismo escuro e só se ouvia o ruído das águas do mar sem fim agitado por um
vento furioso. Tudo era sem forma e vazio. Não havia beleza, não havia música e
nem estórias...
Foi
então que, de repente ouviu-se no meio do caos uma melodia: eram os sonhos
adormecidos da matéria que viviam no fundo das águas e que acordavam do seu
longo sono. E do fundo das águas lamacentas brotou o Lótus, a flor sagrada
branca. A fúria se acalma diante da beleza. O mar ficou tranquilo. Ficou azul.
O vento impetuoso tornou-se brisa. Do Lótus surgiu uma luz que espalhou pelo
espaço as sete cores do arco-íris. E surgiram as galáxias, as estrelas, o Sol,
a Lua. De noite brilhavam estrelas. De dia brilhava o Sol. E entre o dia e a
noite a Lua navegava pelo mar azul do céu.
Mas tudo
era grande demais. E a Beleza não gosta de coisas grandes. Ela então formou
esse pequeno lugar em que moramos, a Terra, para ali fazer sua obra mais bela:
um jardim”.
Mestre
Benjamin fez uma pausa, tomou um grosso livro de capa vermelha que estava sobre
uma almofada ao seu lado esquerdo. Na sua lombada estava escrito com letras
douradas: Poesias.
“Esse
livro é diferente de todos os outros”, disse Mestre Benjamin. “Nos outros
livros escrevem-se as coisas do Tempo. No livro da Poesia escrevem-se as coisas
da Eternidade. Nele se encontram todos os poemas que se escreveram no passado,
todos os poemas que estão sendo escritos no presente, todos os poemas que serão
escritos no futuro. Os poetas não inventam. Eles são anjos que têm a graça de
ler os poemas que estão escritos nesse livro”.
Mestre
Benjamin fez uma pausa, folheou o livro de poesias, parou e começou a ler
vagarosamente:
No
mistério do Sem-Fim equilibra-se um planeta.
No
planeta, um jardim.
No
jardim, um canteiro.
No
canteiro, uma violeta.
E
na violeta,
Entre
o mistério do Sem-Fim e o planeta,
O
dia inteiro,
A
asa de uma borboleta.
(Cecília
Meireles)
“Vejam.
Tudo começa no mistério do ‘Sem-Fim’. E termina na ‘asa de uma borboleta’, no
jardim”.
Mestre
Benjamin olhou os rostos dos que o ouviam. Seus rostos tinham as marcas do
êxtase(...). E continuou:
“Um
jardim, Paraíso, lugar de delícias... E viu Deus que era muito bom... E Deus,
que tinha um rosto de criança, riu de felicidade e disse: ‘Que bom lugar para
se morar, eternamente’. E deixando para sempre o céu vazio passou a viver no
jardim, brincando à brisa fresca da tarde. Árvores, regatos, flores, pássaros,
borboletas, perfumes, cores, sons, nuvens, chuva, frutas: esses eram os
brinquedos do Deus criança.
No
Paraíso não havia templos porque Deus morava no jardim. No Paraíso ninguém
rezava porque a Beleza era uma oração”.
Mestre
Benjamin parou de falar. Tomou o livro de poesias e leu:
Rezam
meus olhos quando contemplo a beleza.
A
beleza é a sombra de Deus no mundo.
(Helena
Kolody)
Leu e se
calou por um longo tempo, observando os rostos das pessoas. Aí passou algumas
páginas do livro e disse: “Daqui a muitos séculos vai nascer uma mulher
solitária que sabia das coisas de Deus. O seu nome será Emily Dickinson. Ouçam
o que ela escreverá:
“Alguns
guardam o Domingo indo à Igreja –
Eu
o guardo ficando em casa –
Tendo
um Sabiá como cantor –
E
um Pomar por Santuário –
Alguns
guardam o Domingo em vestes brancas –
Mas
eu só uso minhas Asas –
E
ao invés do repicar dos sinos na Igreja –
Nosso
pássaro canta na palmeira –
É
Deus que está pregando, pregador admirável –
E
o seu sermão é sempre curto.
Assim,
ao invés de chegar ao Céu só no final –
Eu
o encontro o tempo todo no quintal”.
Nesse
momento Mestre Benjamin notou que algumas criancinhas já estavam dormindo no
colo de suas mães. Era hora de todos dormirem.
“Amanha
eu conto mais”, ele disse, pondo fim à sessão de estórias.
Todos
foram para suas casas e sonharam que as estrelas eram borboletas nas pétalas
das violetas do grande jardim do universo...
Rubem Alves. “Perguntaram-me se acredito
em Deus”. Capítulo II