terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

A ociosidade


Quando pequenos, meu irmão e eu éramos vadios e preguiçosos. Todo pretexto nos servia para faltarmos com nossos deveres, cabular as aulas e ficar vagabundeando pelos pomares, campos ou quarteirões da cidade onde vivíamos.

Evidentemente nossos pais se aborreciam com aquilo, mas, em lugar de nos castigar ou partir para uma agressão física, esperavam o momento certo para nos advertir mais seriamente, sem saírem do tratamento amorável e paciente que nos dispensavam.

Esse momento chegou quando, em certo dia, depois do almoço, nos preparávamos para mais uma vadiagem. Nossa mãe não se dirigiu a mim, mas a meu irmão. Desconfiado e expectante, fiquei a esperar pelo que se ia dar. Em seu tom de voz habitual e como que ocasionalmente, ela disse:

- Meu filho, será que você me poderia fazer um favor?

- Pois não, mamãe!

Eu percebia que meu irmão também não estava seguro do que se ia dar. Mamãe prosseguiu:

- Eu gostaria que você fosse até aquele terreno baldio e viesse me contar o que existe ali.

O terreno ficava quase enfrente à nossa casa e nós o conhecíamos muito bem, pois servia aos nossos constantes lazeres. Entretanto, mesmo assim ele atendeu e poucos minutos depois voltava.

- Mamãe, ali só existe lixo e porcaria. Metais enferrujados, papéis, vidros quebrados, arames, garrafas. Nada que se aproveite.

Como se não tivesse ouvido a última observação, mamãe perguntou:

- Mas não haverá uma serventia para aquelas coisas?

- Ah mamãe, está claro que não!

Voltando-se para mim ela pediu:

- Agora você, meu filho. Vá até o portão do jardim e venha me contar o que existe nos outros terrenos.

Aquilo também era claro, mas, como meu irmão, obedeci. E voltei logo, dizendo:

- Nos outros terrenos há casas, pomares e jardins. 

- Que coisa! disse mamãe pensativa. Por que será que se acumularam tantas coisas inúteis no terreno baldio?

Eu e meu irmão, triunfantes, respondemos quase que ao mesmo tempo:

- Ora, mamãe, porque ele está vazio.

- Pobre terreno! exclamou mamãe. Não sendo aproveitado para nada, transformou-se em depósito de lixo. Isso dá o que pensar, pois é como os dias de nossa vida. Se não soubermos aproveitá-los, vão se enchendo de coisas inúteis. Uma vida ociosa é como um terreno baldio: recolhe tudo o que é ruim e imprestável. É por isso que na vida do homem trabalhador, que sabe encher bem os seus dias, não há lugar para os vícios, maldades e enganos de qualquer espécie.

Mamãe não tinha terminado ainda de dizer e meu irmão e eu já nos entreolhávamos rubros de vergonha.

É escusado dizer que nos modificamos. E, ao longo dos anos, em diversas circunstâncias da vida, quando se nos apresenta qualquer oportunidade para a ociosidade, nos lembramos daquele terreno vazio, cheio de papéis velhos, cacos de vidro e lixo. Tudo inaproveitável.

do livro E, para o resto da vida... (Wallace Leal V. Rodrigues)


sábado, 9 de fevereiro de 2013

A cesta


Quando menina eu era preguiçosa e reclamava quando me atribuíam mesmo os mais insignificantes deveres dentro de casa. Sempre que possível eu transferia o que tinha a fazer para os meus irmãos. Eles, entretanto, não tinham melhor disposição do que eu, de modo que estávamos sempre discutindo e de cara feia uns para com os outros. Meus pais nada diziam e esperavam que decidíssemos as querelas. Hoje percebo que papai simplesmente pensava na maneira pela qual iria nos dar uma lição proveitosa.

Uma das minhas tarefas e a que me deixava sempre mal-humorada, consistia em pegar uma cesta e ir comprar pão para a ceia.
Um dia meu pai chegou do trabalho e nos encontrou em conflito, com a cesta no chão, entre nós. Ele estava visivelmente fatigado, porém, ao invés de se sentar um pouco para descansar, voltou-se para mim e me disse em tom carinhoso:
- Filha, dê-me a cesta.

Eu acedi de pronto, certa de que tinha levado a melhor e que um de meus irmãos ia ser mandado à padaria. Mas não foi isso que aconteceu. Dirigindo-se a nós todos propôs-nos o seguinte:

- Filhos, até aqui eu tenho dado o 
dinheiro e vocês tem feito as compras. Vamos mudar um pouco. Vocês vão dar o dinheiro e eu irei fazer as compras. Já estou com a cesta e vou à padaria buscar o pão. Vocês, por favor, me deem o dinheiro para pagá-lo.

Aquela mudança inesperada nos assustou a todos e ficamos por um instante a nos entreolhar sem dizer palavra.

Sem suportar por mais tempo a situação, tomei-lhe a cesta, peguei o dinheiro e fui buscar os pães, muito pensativa, deixando meus irmãos em um silêncio de perplexidade. Papai foi tomar o seu banho como se nada tivesse acontecido.

Voltei e quando já estávamos todos sentados à mesa para a refeição, com muita cordialidade ele se dirigiu a nós:

- Filhos, disse, a ceia representa uma bênção de Deus e o esforço de cada um de nós. Deus nos abençoou para que eu pudesse trabalhar ganhar o dinheiro, vocês fizessem as 
compras com ele e sua mãe cozinhasse a comida. Assim, todos nos alimentamos e nos sentimos satisfeitos. A cooperação é a garantia do lar e da humanidade inteira. Quando ela falta a benção de Deus não pode ser realizada. Ao longo de toda vida vocês verão que tal acontece.

Depois disso nossa atitude mudou. A lição serviu para todos nós e ainda hoje, quando nos reunimos, lembramo-nos de papai e daquela ceia. De cada vez que a nossa colaboração, para qualquer trabalho digno, nos é solicitada, lembramo-nos daquela cesta de carregar pão e alegremente aceitamos a incumbência certos de que, assim, a benção de Deus nos estará beneficiando e beneficiando a todos.
do livro E, para o resto da vida (Wallace Leal V. Rodrigues)

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

A carroça


Uma das grandes preocupações de nosso pai, quando éramos pequenos, consistia em fazer-nos compreender o quanto a cortesia é importante na vida.
Por varias vezes percebi o quanto lhe desagradava o hábito que tem certas pessoas de interromper a conversa quando alguém estava falando. Eu, especialmente, incidia muitas vezes nesse erro. Embora visivelmente aborrecido, ele, entretanto, nunca ralhou comigo por causa disso, o que me surpreendia bastante.
Certa manhã, bem cedo, ele me convidou para ir ao bosque a fim de ouvir o cantar dos pássaros. Acendi com grande alegria e lá fomos nós, umedecendo nossos calçados com o orvalho da relva.
Ele se deteve em uma clareira e, depois de um pequeno silêncio, me perguntou:
- você está ouvindo alguma coisa além do canto dos pássaros?
Apurei o ouvido alguns segundos e respondi:
Estou ouvindo o barulho de uma carroça que deve estar descendo pela estrada.
- isso mesmo... disse ele. É uma carroça vazia...
De onde estávamos não era possível ver a estrada e eu perguntei admirado:
 - Como pode o senhor saber que está vazia?
 - Ora, é muito fácil saber que é uma carroça vazia. Sabe por que?
 - Não! Respondi intrigado.
Meu pai pôs-me a mão no ombro e olhou bem no fundo dos meus olhos, explicando:
- Por causa do barulho que faz. Quanto mais vazia a carroça, maior é o barulho que faz.
Não disse mais nada, porém deu-me muito em que pensar.
Tornei-me adulto e, ainda hoje, quando vejo uma pessoa tagarela e importuna, interrompendo intempestivamente a conversa de todo o mundo ou quando eu mesmo, por distração, vejo-me prestes a fazer o mesmo, imediatamente tenho a impressão de estar ouvindo a voz de meu pai soando na clareira do bosque e me ensinando:
 - Quanto mais vazia a carroça, maior é o barulho que faz!

do livro E PARA O RESTO DA VIDA de Walace Rodrigues