“Ele, guerreiro, cavalgava um cavalo negro. Seus olhos eram tranquilos, seu rosto era triste, seus cabelos eram dourados como a luz do sol, e a sua voz só se ouvia depois de longos silêncios. Ela era diáfana como a lua, seus cabelos eram negros como a noite, e sua voz era mansa como a luz das estrelas. Eles muito se amavam e o seu amor era belo”.
Você disse estar enfeitiçada: você e o seu amado. Disse que o que está acontecendo com vocês é o que aconteceu no filme O feitiço de Áquila, sobre que já escrevi. Disse que eu sou feiticeiro. Pediu um contrafeitiço. De fato, sou um feiticeiro. Conto estórias para quebrar feitiços. É isso que faz um psicanalista contador de estórias. Estórias têm um poder mágico. Elas produzem metamorfoses inesperadas nas pessoas. Quem diz é Guimarães Rosa. E se ele, bruxo mor, disse, quem sou eu para contradizer?
Assim, no exercício de meus poderes de feiticeiro, vou recontar a estória. Menos o final. Preste bem atenção no final. Ele vai ser diferente. É nele que está o contrafeitiço.
“Ele, guerreiro, cavalgava um cavalo negro. Seus olhos eram tranquilos, seu rosto era triste, seus cabelos eram dourados como a luz do sol, e a sua voz só se ouvia depois de longos silêncios.
Ela era diáfana como a lua, seus cabelos eram negros como a noite, e a sua voz era mansa como a luz das estrelas.
Eles muito se amavam e o seu amor era belo.
Mas havia naquela terra um feiticeiro que manipulava poderes do mal. Ele viu a moça-lua e se apaixonou por ela. Quis tê-la para si mesmo. Mas ela amava o guerreiro e repeliu os gestos do feiticeiro. Este, enfurecido, lançou sobre os amantes um feitiço: estariam condenados, pelo resto de seus dias, a nunca se tocarem. A mulher seria como a lua. Só apareceria à noite, depois de o sol se pôr. Durante o dia ela seria um falcão caçador, branco, com bico de garras de rapina. E seu amado seria como o sol. Só apareceria durante o dia, depois de o sol nascer. Durante a noite ele seria um lobo negro caçador.
E assim aconteceu. Durante o dia o guerreiro cavalgava o seu cavalo levando no ombro sua amada, falcão branco. Vez por outra o falcão alçava vôo, subia até as alturas e, de repente, com um pio estridente, mergulhava como uma flecha para pegar alguma presa. Durante a noite o falcão voltava a ser mulher, e ficava ao lado do seu amado, lobo negro, que se deitava aos seus pés e lambia suas mãos. Vez por outra ele se levantava e entrava sozinho na floresta escura, para viver a sua vida selvagem de lobo.
Mas havia um breve momento encantado quando eles quase se tocavam. Ao pôr-do-sol, quando a luz do dia se misturava com o escuro da noite, era o momento mágico: o falcão voltava a ser mulher e o guerreiro se transformava em lobo. Ao nascer do sol, quando o escuro da noite se misturava com a luz do dia, o lobo voltava a ser guerreiro e a mulher se transformava em falcão. Nesse brevíssimo momento os dois apareciam um ao outro como sempre tinham sido e viviam por um segundo a beleza do seu amor. Suas mãos se estendiam, uma querendo tocar a outra – mas o toque era impossível. Antes que suas mãos se tocassem a metamorfose acontecia. E não podiam se amar como homem e mulher.
O guerreiro amava o falcão. Ele sabia que dentro do falcão vivia sua amada de voz mansa. Mas ela vivia encantada, adormecida. Dela, o que ele tinha era apenas a ave muda, mergulhada no silêncio do seu mistério.
Ele acariciava suas penas – mas um falcão não é uma mulher. O falcão não era a sua amada. Ele a carregava na pequena esperança do momento encantado e na grande esperança de que, um dia, o feitiço fosse quebrado.
A mulher amava o lobo. Ela sabia que dentro do lobo vivia o guerreiro de olhos profundos que ela amava. Mas ele vivia encantado, adormecido. Dele, ela só tinha os olhos mergulhados no silêncio. Ela acariciava o pelo negro – mas um lobo não é um homem. O lobo não era o guerreiro que ela amava. Ela o acariciava na pequena esperança do momento encantado e na grande esperança de que, um dia, o feitiço seria quebrado.
O amor pode muito. Ele é o poder bruxo, mais forte que os feitiços maus. E aconteceu que, um dia, depois de uma luta horrenda, o feiticeiro foi morto e o feitiço foi quebrado. E o guerreiro voltou a ser guerreiro que sempre fora, e a mulher voltou a ser a mulher que sempre fora. E suas mãos puderam se tocar e tudo foi alegria e eles se casaram e viveram felizes para sempre...”.
Assim termina a estória, com um final feliz. Pois o meu contrafeitiço exige que o fim da estória seja esse outro. E é esse outro fim que passo a lhe contar.
O guerreiro, não podendo suportar a tristeza da sua condição, resolveu procurar um feiticeiro bom que tivesse poder maior que o feiticeiro mau. Ele se chamava Merlin. O guerreiro foi à sua morada-caverna, no alto de uma montanha, levando ao ombro o seu falcão. Lá chegando contou-lhe a sua desgraça e formulou o seu pedido: queria que ele e sua amada deixassem de ser lobo e falcão e voltassem a ser homem e mulher para que pudessem se amar.
Merlin fez um grande silêncio e lhe disse:
Não posso atender ao seu pedido porque isso seria a sua perdição, o fim do seu amor. A magia nada cria. A magia só tem o poder para trazer das profundezas aquilo que lá existia. Você, no fundo da sua alma, é um lobo selvagem. A sua amada, no fundo da sua alma, é um falcão selvagem. Ela o amava porque via, no fundo dos seus olhos mansos, um lobo que andava sem medo de florestas escuras. E você a amava porque via, no fundo dos seus olhos mansos, um falcão que voava sem medo nas alturas. Se eu, por um feitiço, destruir o selvagem que há em você e o selvagem que há nela, não mais haverá mistérios dentro dos seus olhos. Vocês se transformarão em animais domésticos: um cão que abana o rabo para ganhar um osso, uma pata que não consegue voar. Vocês viverão sempre juntos, até que a morte os separe – animais domésticos não se separam; eles têm medo das matas escuras e das alturas nas montanhas. Domesticados, vocês se transformarão em seres banais. Você não terá estórias das matas escuras para lhe contar nem ela terá estórias de voos pelos picos gelados das montanhas. Sobre o que vocês conversarão? O seu amor se transformará num tédio interminável.
O guerreiro chorou. “Então, nosso amor está condenado? “Não”, disse Merlin.
Há esperança, mas não do jeito como vocês querem. O que vou fazer não é desfazer o feitiço, mas rearranjar o feitiço. Quando os primeiros raios do sol iluminarem o horizonte, você se transformará em falcão. Você irá para o mistério das matas e ela, para os mistérios dos seus. E assim vocês serão lobo e falcão, cada um no seu caminho, sozinhos, até que o sol se ponha. Quando o sol se puser e a primeira estrela aparecer, você voltará a ser guerreiro-sol, e ela voltará a ser a mulher-lua. Aí então, quando cessam os barulhos e a correria do dia, vocês se encontrarão, se abraçarão e se amarão.
Ditas essas palavras, Merlin ficou silencioso. Acendeu a fogueira na sua caverna, porque estava ficando frio. O sol estava se pondo. A noite se aproximava. Aceso o fogo, ele pronunciou palavras de bruxedo e despediu o guerreiro com o seu falcão.
O guerreiro, falcão no ombro, começou a longa descida da montanha para a planície. Seu rosto estava iluminado pelos últimos raios do sol que se punha e foi então que, no meio do céu, ele viu a primeira estrela que aparecia...
TEXTO RETIRADO DO LIVRO “NAVEGANDO” DE RUBEM ALVES, PAGINA 57