sábado, 30 de junho de 2012

O lobo e o falcão




“Ele, guerreiro, cavalgava um cavalo negro. Seus olhos eram tranquilos, seu rosto era triste, seus cabelos eram dourados como a luz do sol, e a sua voz só se ouvia depois de longos silêncios. Ela era diáfana como a lua, seus cabelos eram negros como a noite, e sua voz era mansa como a luz das estrelas. Eles muito se amavam e o seu amor era belo”.

                Você disse estar enfeitiçada: você e o seu amado. Disse que o que está acontecendo com vocês é o que aconteceu no filme  O feitiço de Áquila, sobre que já escrevi. Disse que eu sou feiticeiro. Pediu um contrafeitiço. De fato, sou um feiticeiro. Conto estórias para quebrar feitiços. É isso que faz um psicanalista contador de estórias. Estórias têm um poder mágico. Elas produzem metamorfoses inesperadas nas pessoas. Quem diz é Guimarães Rosa. E se ele, bruxo mor, disse, quem sou eu para contradizer?
                Assim, no exercício de meus poderes de feiticeiro, vou recontar a estória. Menos o final. Preste bem atenção no final. Ele vai ser diferente. É nele que está o contrafeitiço.
                “Ele, guerreiro, cavalgava um cavalo negro. Seus olhos eram tranquilos, seu rosto era triste, seus cabelos eram dourados como a luz do sol, e a sua voz só se ouvia depois de longos silêncios.
                Ela era diáfana como a lua, seus cabelos eram negros como a noite, e a sua voz era mansa como a luz das estrelas.
                Eles muito se amavam e o seu amor era belo.
                Mas havia naquela terra um feiticeiro que manipulava poderes do mal. Ele viu a moça-lua e se apaixonou por ela. Quis tê-la para si mesmo. Mas ela amava o guerreiro e repeliu os gestos do feiticeiro. Este, enfurecido, lançou sobre os amantes um feitiço: estariam condenados, pelo resto de seus dias, a nunca se tocarem. A mulher seria como a lua. Só apareceria à noite, depois de o sol se pôr. Durante o dia ela seria um falcão caçador, branco, com bico de garras de rapina. E seu amado seria como o sol. Só apareceria durante o dia, depois de o sol nascer. Durante a noite ele seria um lobo negro caçador.
                E assim aconteceu. Durante o dia o guerreiro cavalgava o seu cavalo levando no ombro sua amada, falcão branco. Vez por outra o falcão alçava vôo, subia até as alturas e, de repente, com um pio estridente, mergulhava como uma flecha para pegar alguma presa. Durante a noite o falcão voltava a ser mulher, e ficava ao lado do seu amado, lobo negro, que se deitava aos seus pés e lambia suas mãos. Vez por outra ele se levantava e entrava sozinho na floresta escura, para viver a sua vida selvagem de lobo.
                Mas havia um breve momento encantado quando eles quase se tocavam. Ao pôr-do-sol, quando a luz do dia se misturava com o escuro da noite, era o momento mágico: o falcão voltava a ser mulher e o guerreiro se transformava em lobo. Ao nascer do sol, quando o escuro da noite se misturava com a luz do dia, o lobo voltava a ser guerreiro e a mulher se transformava em falcão. Nesse brevíssimo momento os dois apareciam um ao outro como sempre tinham sido e viviam por um segundo a beleza do seu amor. Suas mãos se estendiam, uma querendo tocar a outra – mas o toque era impossível. Antes que suas mãos se tocassem a metamorfose acontecia. E não podiam se amar como homem e mulher.
                O guerreiro amava o falcão. Ele sabia que dentro do falcão vivia sua amada de voz mansa. Mas ela vivia encantada, adormecida. Dela, o que ele tinha era apenas a ave muda, mergulhada no silêncio do seu mistério.
                Ele acariciava suas penas – mas um falcão não é uma mulher. O falcão não era a sua amada. Ele a carregava na pequena esperança do momento encantado e na grande esperança de que, um dia, o feitiço fosse quebrado.
                A mulher amava o lobo. Ela sabia que dentro do lobo vivia o guerreiro de olhos profundos que ela amava. Mas ele vivia encantado, adormecido. Dele, ela só tinha os olhos mergulhados no silêncio. Ela acariciava o pelo negro – mas um lobo não é um homem. O lobo não era o guerreiro que ela amava. Ela o acariciava na pequena esperança do momento encantado e na grande esperança de que, um dia, o feitiço seria quebrado.
                O amor pode muito. Ele é o poder bruxo, mais forte que os feitiços maus. E aconteceu que, um dia, depois de uma luta horrenda, o feiticeiro foi morto e o feitiço foi quebrado. E o guerreiro voltou a ser guerreiro que sempre fora, e a mulher voltou a ser a mulher que sempre fora. E suas mãos puderam se tocar e tudo foi alegria e eles se casaram e viveram felizes para sempre...”.
                Assim termina a estória, com um final feliz. Pois o meu contrafeitiço exige que o fim da estória seja esse outro. E é esse outro fim que passo a lhe contar.
                O guerreiro, não podendo suportar a tristeza da sua condição, resolveu procurar um feiticeiro bom que tivesse poder maior que o feiticeiro mau. Ele se chamava Merlin. O guerreiro foi à sua morada-caverna, no alto de uma montanha, levando ao ombro o seu falcão. Lá chegando contou-lhe a sua desgraça e formulou o seu pedido: queria que ele e sua amada deixassem de ser lobo e falcão e voltassem a ser homem e mulher para que pudessem se amar.
                Merlin fez um grande silêncio e lhe disse:
                Não posso atender ao seu pedido porque isso seria a sua perdição, o fim do seu amor. A magia nada cria. A magia só tem o poder para trazer das profundezas aquilo que lá existia. Você, no fundo da sua alma, é um lobo selvagem. A sua amada, no fundo da sua alma, é um falcão selvagem. Ela o amava porque via, no fundo dos seus olhos mansos, um lobo que andava sem medo de florestas escuras. E você a amava porque via, no fundo dos seus olhos mansos, um falcão que voava sem medo nas alturas. Se eu, por um feitiço, destruir o selvagem que há em você e o selvagem que há nela, não mais haverá mistérios dentro dos seus olhos. Vocês se transformarão em animais domésticos: um cão que abana o rabo para ganhar um osso, uma pata que não consegue voar. Vocês viverão sempre juntos, até que a morte os separe – animais domésticos não se separam; eles têm medo das matas escuras e das alturas nas montanhas. Domesticados, vocês se transformarão em seres banais. Você não terá estórias das matas escuras para lhe contar nem ela terá estórias de voos pelos picos gelados das montanhas. Sobre o que vocês conversarão? O seu amor se transformará num tédio interminável.
                O guerreiro chorou. “Então, nosso amor está condenado? “Não”, disse Merlin.
                Há esperança, mas não do jeito como vocês querem. O que vou fazer não é desfazer o feitiço, mas rearranjar o feitiço. Quando os primeiros raios do sol iluminarem o horizonte, você se transformará em falcão. Você irá para o mistério das matas e ela, para os mistérios dos seus.  E assim vocês serão lobo e falcão, cada um no seu caminho, sozinhos, até que o sol se ponha. Quando o sol se puser e a primeira estrela aparecer, você voltará a ser guerreiro-sol, e ela voltará a ser a  mulher-lua. Aí então, quando cessam os barulhos e a correria do dia, vocês se encontrarão, se abraçarão e se amarão.
                Ditas essas palavras, Merlin ficou silencioso. Acendeu a fogueira na sua caverna, porque estava ficando frio. O sol estava se pondo. A noite se aproximava. Aceso o fogo, ele pronunciou palavras de bruxedo e despediu o guerreiro com o seu falcão.
                O guerreiro, falcão no ombro, começou a longa descida da montanha para a planície. Seu rosto estava iluminado pelos últimos raios do sol que se punha e foi então que, no meio do céu, ele viu a primeira estrela que aparecia...

TEXTO RETIRADO DO LIVRO “NAVEGANDO” DE RUBEM ALVES, PAGINA 57

quinta-feira, 28 de junho de 2012

POR UM CASAMENTO...



“O amor é dado de graça,
É semeado no vento, na cachoeira,
No eclipe...”
(Carlos Drummond de Andrade)

                O meu fascínio pelos ritos me faz suspeitar que, numa outra vida, é possível que eu tenha sido um sacerdote ou um feiticeiro. Hoje, pouca gente sabe o que são. Um rito acontece quando um poema, achando que as palavras não bastam, encarna-se em gestos, em comida e bebida, em cores e perfumes, em música e dança. O rito é um poema transformado em festa! Escrevo hoje para os que casam, por meio de que, fascinados por um rito, se esqueçam do outro... Porque, caso não saibam, é desse outro, esquecido, que o casamento depende.
                O primeiro rito, sobre que todos sabem, e para o qual se fazem convites, é feito com pedras, ferro e cimento.
                Há um outro rito, secreto, que se faz com o vôo das aves, com água, brisa, espuma e bolhas de sabão.
                O primeiro rito nasceu de uma mistura de alegria e tristeza. Viram o vôo do pássaro, ficaram alegres. Mas logo o pássaro se foi e ficaram tristes. Não lhes bastava que a alegria fosse infinita enquanto durasse. Queriam que ela fosse eterna. E disseram: “Queremos o vôo do pássaro, eternamente”. E que coisa melhor existe para conter o vôo do pássaro que uma gaiola? E assim fizeram. Engaiolaram o pássaro e chamaram os mágicos, ordenando-lhes que dissessem as palavras do bruxedo: “Para sempre, até a morte os separe”.
                A definição mais precisa desse rito, eu a ouvi da boca de um sacerdote. “Não é o amor que faz um casamento”, ele afirmou. “São as promessas”.
                Assustei-me. Sabia que assim, era no civil, casamento-contrato, rito frio da sociedade, para definir os deveres (sobre os prazeres se faz silêncio) e a partilha dos bens e dos males. Sociedade é cois sólida. Precisa de pedra, ferro e cimento. Garantias. Testemunhas. Documentos. O futuro há de ser da forma como o presente o desenhou. Para isso, os contratos. E a substância do contrato são as promessas. Sim. Ele estava certo. “Não é o amor que faz o casamento. São as promessas.”.
                Promessas são as palavras que engaiolam o futuro. Por isso elas se fazem acompanhar sempre de testemunhas. Se o pássaro engaiolado, em algum momento do futuro, mudar de sentimento e de ideia e resolver voar, as testemunhas estão lá para reafirmar as promessas feitas no passado. O dito e contratado não pode ser mudado.
                Muitas são as promessas que os noivos podem fazer: prometo dividir os meus bens, prometo não maltrata-la, prometo não humilha-lo, prometo protegê-la, prometo cuidar de você na doença. Atos exteriores podem ser prometidos.
                Assim se fazem os casamentos, com pedra, ferro, cimento e amor. Mas as coias do amor não podem ser prometidas. Não posso prometer que, pelo resto da minha vida, sorrirei de alegria ao ouvir seu nome. Não posso prometer que, pelo resto de minha vida, sentirei saudades na sua ausência.
                Sentimentos não podem ser prometidos. Não podem ser prometidos porque não dependem da nossa vontade. Sua existência é efêmera. Só existem no momento. Como o vôo dos pássaros, o sopro do vento, as cores do crepúsculo. Esse é um rito de adultos, porque somente os adultos desejam que o futuro seja igual ao presente. A sua gravidade, a sua seriedade, os passo cadenciados, processionais, as suas roupas, as suas máscaras, as palavras sagradas, definitivas, para sempre, o que Deus ajunta os homens não podem separar, a exaltação dos deveres: tudo dá testemunho de que esse é um ritual adulto.
                O outro ritual se faz com o vôo das aves, com água, espuma e bolhas de sabão. Secreto, para ele não há convites. Secreto foi o casamento de Abelardo e Heloisa, o mais belo amor jamais vivido (proibido).
                Não há convites, nem lugar certo, nem hora marcada: simplesmente acontece. “Amor é dado de graça,/ é semeado no vento, / na cachoeira, no eclipe...” (Drummond). Não precisa de altares: sempre que ele acontece o arco-íris aparece: a promessa de Deus, porque Deus é amor. Pode ser sombra de uma árvores, um carro, uma cozinha, um banco de jardim, um vagão de trem, um aeroporto, uma mesa de bar, uma caminhada ao luar...
                Não há promessas para amarrar o futuro. Há confissões de amor para celebrar o presente. “Como és formosa, querida minha, como és formosa! Há mel debaixo da tua língua”, “ O teu rosto, meu amado, é um canteiro de bálsamo e os teus lábios são lírios...” (Bíblia Sagrada); “Eu sei que vou te amar/ por toda a minha vida eu vou te amar/ em cada despedida eu vou te amar / desesperadamente eu sei que vou te amar...” (Vinicius); “Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo tua matéria, fauna e flora... Te amo com uma memória imperecível” (Adélia Prado).
                E os convidados, muitos poucos, vestem-se como crianças: pés descalços, balões coloridos nas mãos: eles sabem que o amor fica somente se permaneceremos crianças, eternamente...

                “Ego, conjugo vobis in matrimonium”, diz um velho com rosto de criança.

                “Para vós que invoco os prazeres que voam nos ventos e as alegrias que moram nas cores: beleza, harmonia, encantamento, magia,mistério, poesia: que essas potencias divinas lhe façam companhia.
Que o sorriso de um seja, para o outro, festa, fartura, mel, peixe assado no fogo, coco maduro na praia, onda salgada do mar...
Que as palavras do outro sejam tecido branco, vestido transparente de alegria, a ser despido por sutil encantamento.
E que no final das contas e no começo dos contos, em nome do nome não-dito, bem-dito, em nome de todos os nomes ausentes e nostalgias presentes, de ágape e filia, amizade e amor, em nome do nome sagrado, do pão partido e do vinho bebido, sejam felizes os dois, hoje, amanha e depois...”

TEXTO RETIRADO DO LIVRO: “NAVEGANDO”, DE RUBEM ALVES, PAGINA 45.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

VOCÊ E O SEU RETRATO



“O seu retrato mais se parece com você do que você mesma...”


                Quem fala “retrato” já confessou a idade. É velho. Hoje se diz “foto”.
                Segundo o Aurélio, as duas palavras são sinônimas. Não são. Os dicionários frequentemente se enganam. “Retrato” e “foto” são habitantes de mundos que não se tocam.
                A “foto” pertence ao mundo da banalidade: o piquenique, o turismo, a festa. Combina com Bic, com chicletes, com Disneylândia. Tirar uma foto é gesto automático, não precisa pensar. É só apertar um botão.
                Um “retrato”, ao contrário, só aparece ao fim de uma meditação metafísica, religiosa. É o ponto final de uma busca. O retratista busca capturar um pássaro mágico invisível que mora na pessoa a ser retratada e que, vez por outra, faz uma aparição efêmera. Um retratista é um caçador de almas. Roland Barthes escreveu um livro maravilhoso sobre a fotografia: câmara clara. Gostava tanto dele que tinha dois exemplares. Emprestei-os a amigos de memória curta. Acontece que a minha memória é mais curta que a deles. Esqueci-me deles. Perdi os livros. Mas minha memória é boa para as coisas que leio e amo. Lembro-me de Barthes examinando cuidadosamente retratos antigos de sua mãe morta. Tinha saudades dela. Mas faltava nelas a essência amada. Não eram fotografias. Depois de muito procurar encontrou a essência amada numa fotografia velha de sua mãe menina.
                Li muitos poemas de apaixonados. Via de regra, os apaixonados se perdem em sua própria paixão. Como se fossem canções sem palavras. Comovem os sentimentos sem provocar o pensamento. Exceção é o poema de Cassiano Ricardo “Você e seu retrato”. Nele, o amor não se afogou em sentimentos. Deseja se conhecer a si mesmo. Por isso filosofa e faz essa estranha pergunta-confissão:
“Por que tenho saudade
De você, no retrato,
Ainda que o mais recente?
E por que um simples retrato,
Mais que você, me comove,
Se você mesma está presente?”

É mais fácil amar o retrato. Eu já disse que o que se ama é uma “cena”. “Cena” é um quadro belo e comovente que existe na alma antes de qualquer experiência amorosa. A busca amorosa é a busca da pessoa que, se achada, irá completar a cena. Antes de te conhecer eu já te amava... E então, inesperadamente, nos encontramos com o rosto que já conhecíamos antes de o conhecer. E somos então possuídos pela certeza absoluta de haver encontrado o que procurávamos. A cena está completa. Estamos apaixonados.
                Cassiano Ricardo não fala de cena; fala de retrato. Não consegue entender a distancia dolorosa que existe entre o retrato e a pessoa amada. A coisca que amo não está em você, minha amada. Onde terá se escondido? Olho para você e sinto uma sensação de estranheza: como se você não estivesse lá. Por isso tenho saudade de você – quando você mesma está presente. Quero você no retrato, porque você não está em você: “... o seu retrato mais se parece com você do que você mesma (ingrato)”.
                A paixão é o mais puro de todos os sentimentos: ela deseja uma coisa somente. Mas essa coisa que ela deseja, e que se mostra no retrato, mora num corpo habitado por muitas outras imagens, não amadas. Juntas, no mesmo corpo, a Bela e a Fera. A estória é ate generosa porque as feras são belas. Haverá coisa mais bela que um tigre? Lya Luft dizia do seu amado, Hélio Pelgrino, que ele era uma fera: batia portas, brigava no transito, rachou um telefone que não dava linha. Mas nele morava um inesperado riso de menino.
                As feras podem ser amadas porque é possível amar o terrível. Mas, e os sapos? Nojentos. O retrato, tocado pelo sapo, transforma-se então em caricatura ridícula. Não acontece de repente. García Márquez diz que a diferença está no pingo de urina na tampa da privada. Não é xixi, coisa de criança, carinhosa. É urina nojenta. Porco. Pingo de urina na tampa da privada destrói qualquer deus. Um jeito de vestir; um olhar estranho, que examina furtivamente sem nada dizer; uma música estranha numa palavra conhecida: tudo são pingos de urina. E a perversa metamorfose do retrato em sapo se opera.
                Por isso seu retrato me dá mais saudade de você que você mesma. No retrato você está sempre abraçada à lua. E no meu retrato, guardado em sua caixa, eu estou sempre abraçado ao sol. No retrato mora a imagem adorada:

“E, talvez, porque o retrato
já sem o enfeite das palavras tenha um ar de lembrança.
Talvez porque o retrato
(exato, embora malicioso),
Revele algo de criança
(como, no fundo da água, um coral em repouso)”

                E, no final, a revelação terrível e amorosa: “Talvez porque no retrato/você está imóvel,/ (sem respiração...)”. Morta? Os crimes de amor são sempre para preservar você, no retrato- contra você, presente. Entre você presente, e o seu retrato, prefiro o retrato. Oscar Wilde, na The Ballad of the Reading Gaol, diz o seguinte: “Pois todos os homens matam a coisa que eles amam...” Compara-se com o grito final de Don José, na ópera Carmen: “sim. Eu a matei, eu – a minha Carmen adorada!”
                O poema termina com uma afirmação comovente: “Talvez porque todo retrato é uma retratação”. Retratação: desdizer, pedir perdão. Desdigo o que eu disse. Peço perdão. Disse que amava o retrato mais que você. Mas o retrato é mentiroso. O retrato e, morta no papel, a coisa viva que só tem viva no seu corpo, e que aparece e desaparece, no meio das feras e dos sapos. O amor sobrevive na esperança de reaparições. Que a amada apareça tal qual Nossa Senhora, abraçada à lua; e o amado, tal qual Nosso Senhor, abraçado ao sol. Pode ser que vocês não acreditem: mas foi para esse momento efêmero da felicidade que o universo foi criado.

TEXTO RETIRADO DO LIVRO “NAVEGANDO DE RUBEM ALVES, PAGINA 39

quinta-feira, 21 de junho de 2012

EM LOUVOR À INUTILIDADE




Em louvor à inutilidade


“As crianças, do jeito como saem das mãos de Deus, são brinquedos inúteis, não servem para coisa alguma...”

                Brinquedo não serve para nada. Objeto inútil. Útil é uma coisa que pode ser usada para se fazer algo. Por exemplo, uma panela.
                Ela é útil. Com ela se fazem feijoadas, moquecas e sopas. Uma escada também é útil: pode ser usada para se subir no telhado, para apanhar jabuticabas nos galhos altos, para trocar uma lâmpada. Um barco é útil: pode ser usado para atravessar um rio. Uteis são o palito, a vassoura, o canivete, o pente, a camisinha, a aspirina, o lápis, a bicicleta, o computador e os meus dedos que digitam as palavras que penso.
                Convidaram-me para dar uma palestra para pessoas de terceira idade. Comecei minha fala de forma solene: “Então os senhores e as senhoras chegaram finalmente a essa idade maravilhosa em que podem se dar ao luxo de ser totalmente inúteis!” Pensaram que fosse xingamento, ofensa. E trataram, cada um, de me explicar sua utilidade. E exigiram ser colocados na caixa das coisas uteis, onde estavam a vassoura, o papel higiênico e o serrote. Mas eu só queria que eles fossem colocados no mesmo baú onde estavam os brinquedos.
                Lá em Minas era assim que se valorizava o marido, dizendo que ele morava na caixa de coias úteis: “ O Onofre é assim caladão, desengonçado e sem jeito. Mas marido melhor não pode haver. É sem defeito. Bom demais: não deixa faltar nada em casa...”
                As mães, sagazes, sabiam que um casamento duradouro depende da utilidade das esposas. Como a expressão “esposa útil” não fica bem, substituíram-na por “esposa prendada”. Sabedoria das mães sagazes: esposa prendada, casamento duradouro, mãe viúva abrigada. Preparavam suas filhas para o casamento transformando-as em ferramentas-complementos de panelas, agulhas e vassouras. Cozinhar, varrer, costurar: esses erma os saberes necessários à formação de uma mulher útil. Nunca ouvi falar, não conheço, ignoro qualquer esforço no sentido de desenvolver nos homens e nas mulheres os seus potencias de brinquedo. Afinal de contas, brinquedo é coisa inútil.
                O que se procura é um cavalo (ou égua) marchador, que não se espante com mau tempo, que fique amarrado no pau espantando moscas com o rabo sem relinchar: muito mais útil que um cavalo selvagem, lindo de se espiar, maravilhoso de se sonhar, mas impossível de se montar. Simetricamente, uma mulher submissa, caseira e trabalhadora vale mais que uma mulher com ideias próprias que voa por lugares não sabidos. Há um capitulo nas Sagradas Escrituras, no livro de Provérbios (31: 10-31), onde se encontra a mais fantástica ficção sobre a mulher virtuosa que eu jamais vi. Aquilo não é uma mulher; é uma máquina. Mulher faz-tudo, de um marido faz-nada. Porque não sobra nada para ele fazer. A descrição é tão doida que a única explicação que tenho para tal colar impossível de virtudes é o que o autor devia estar fazendo uma brincadeira, gozação amorosa com sua mulherzinha que não era nada daquilo, mas que tinha virtudes de brinquedo que ele adorava.
                Quando o valor das coias está na utilidade, no momento em que deixam de ser uteis são jogadas fora. Uma lâmpada queimada, uma caneta Bic vazia, um saquinho de chá usado: vão todos para o lixo. Na hora de despedir os empregos é sempre a lei da utilidade que funciona. Cozinheira que cozinha bem fica no emprego e tem aumento. Cozinheira que põe sal demais no feijão e deixa queimar o arroz é despedia. Esta é a lei da utilidade: o menos útil é jogado fora para que o mais útil tome o seu lugar. Minha máquina de escrever, faz mais de um ano que não toco nela. Isso vale para as pessoas. É a lei da selva, a sobrevivência do mais apto.
                Muitas pessoas chegam mesmo a colocar Deus nesse rol de utilidades, ao lado desses objetos-ferramentas. Claro, a ferramenta mais potente, capaz de fazer tudo o que as outras não fazem: encontrar chave perdida, curar câncer, fazer o filho passar no vestibular, segurar o avião lá em cima, impedir acidente de automóvel, encontrar casa para alugar ou homem ou mulher com quem casar. Toda vez que alguém diz: “Graças a Deus” está dizendo: “Ferramenta útil é esse Deus. Até agora fez tudo direitinho”.
                As crianças, do jeito como saem das mãos de Deus, são brinquedos inúteis, não servem para coisa alguma. Assim são a Ana Carolina, a Isabel, a Camila, a Flora, a Ana Paula, a Mariana, a Carol, a Aninha... É compreensível. Deus, segundo Jacob Boehem, místico medieval, é uma criança que só faz brincar. Ele não se dá bem com os adultos. Tanto assim que, no momento em que Adão e Eva pararam de brincar ficaram inúteis, Deus os expulsou do Paraíso. Fez isso não por não gostar deles, mas por medida preventiva: sabia que qualquer Paraíso vira inferno quando um adulto entra lá. Agora, para entrar outra vez no Paraíso, é preciso nascer de novo e virar criança. Aquela estória do livro de contabilidade de Deus, nas mãos de São Pedro, na entrada do céu, é tudo invenção de adulto com cabeça de banqueiro. Na verdade, o que acontece é o seguinte: Na porta do Paraíso está aquela Criança que Alberto Caeiro descreveu num longo poema. Ela não consulta livro e não pergunta nada. Só abre um baú enorme, onde estão guardados todos os brinquedos inventados e por inventar, e diz: “Escolha um para brincar comigo!”
                Quem ficar feliz e souber brincar entra. Mas muitos ficam bravos. Traziam, numa mala etiquetada de “boas obras”, todas as utilidades que haviam ajuntado. Queriam mostrá-las a Deus-Pai. Mas a Criança não se interessa pela mala. Os chegantes se sentem ofendidos. Desrespeito serem recebidos assim! Ficam desconfiados. Fecham a cara. Dizem que são pessoas serias. Para isso foram à escola – para serem transformados de meninos em adultos.
                A Criança lhes sorri e lhes diz que, naquela escola, eles não passaram. Não podem entrar no Paraiso. Ficaram de DP. “Voltem quando tiverem deixado de ser adultos. Voltem quando tiverem voltado a ser crianças. Voltem quando tiverem aprendido a brincar...”

TEXTO RETIRADO DO LIVRO “NAVEGANDO” DE RUBEM ALVES. PAGINA 15.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

QUERO VIVER MUITOS ANOS...



“Quero viver enquanto estiver acesa, em mim, a capacidade de me comover diante da beleza...”

Sim, eu quero viver muitos anos mais. Mas não a qualquer preço. Quero viver enquanto estiver acesa, em mim, a capacidade de me comover diante da beleza.
A comoção diante da beleza tem o nome de “alegria”, mesmo quando as lágrimas escorrem pela face. A alegria e a tristeza são boas amigas. Assim o disse a minha amiga Adélia: “A poesia é tão triste. O que é bonito enche os olhos de lágrimas. Por prazer da tristeza eu vivo alegre”.
Essa capacidade de sentir alegria é a essência da vida. Quase que disse “vida humana”, mas parei a tempo. Pões é muita presunção de nossa parte pensar que somente nós recebemos essa graça. Aquela farra de pulos, correria, mordidas e gestos de faz-de-conta em que se envolvem minha velha Doberman (nunca tive cachorro mais gentil!) e o Cocker novinha, nenê, aquilo é pura alegria. E o vôo do beija-flor, flutuando parado no ar, gozando a água fria que sai do esguicho – também isso é alegria. Lembrei-me de um místico que orava assim: “Ó Deus! Que aprendamos que todas as criaturas vivas não vivem só para nós, que elas vivem para si mesmas e para Ti. E que elas amam a doçura da vida tanto quanto nós”.
Na alegria, a natureza atinge seu ponto mais alto: ela se torna divina. Quem tem alegria tem Deus. Nada existe, no universo, que seja maior que esse dom . o universo inteiro, com todas as suas galáxias: somos maiores e mais belos do que ele, porque nós podemos nos alegrar diante da beleza dele, enquanto ele mesmo não se alegra com coisa alguma.
Quero viver muito, mas o pensamento da morte não me dá medo. Me dá tristeza. Este mundo é tão bom. Não quero ser expulso do campo no meio do jogo. Não quero morrer com fome. Há tantos queijos esperando ser comidos. Quando o corpo não tiver mais fome, quando só existirem o enfado e o cansaço, então quererei morrer. Saberei que a vida se foi, a despeito dos sinais biológicos externos que parecem dizer o contrário. De fato, não há razoes para o medo. Porque só há duas possibilidades. Nada existe depois da morte. Neste caso, eu serei simplesmente reconduzido ao lugar onde estive sempre, desde que o universo foi criado. Não me lembro de ter sentido qualquer ansiedade durante essa longa espera. Meu nascimento foi um surgir do nada. Se isso aconteceu uma vez, é possível que aconteça outras. O milagre pode voltar a se repetir algum dia. Assim esperava Alberto Caeiro, orando ao Menino Jesus: “... E dá-me sonhos teus para eu brincar/ Até que nasça qualquer dia / Que tu sabes qual é...”.
Se, ao contrário, a morte for a passagem para outro espaço, como afirmam as pessoas religiosas, também não há razoes para temer. Deus é amor e, ao contrário do que reza a teologia cristã, ele não tem vinganças a realizar, mesmo que não acreditemos nele. E nem poderia ser de outra forma: eu jamais me vingaria dos meus filhos. Como poderia o “Pai Nosso” fazê-lo?
Mas eu tenho medo de morrer. Pode ser doloroso.
O que eu espero: não quero sentir dor. Para isso, há todas as maravilhosas drogas da ciência, as divinas morfinas, dolantinas e similares. Quero também estar junto das cosias e das pessoas que me dão alegria.
Quero meu cachorro – e se algum médico ou enfermeira alegar, em nome da ciência, que cachorros podem transmitir enfermidades, eu os mandarei para aquele lugar. Os que estão morrendo tornaram-se invulneráveis. Eles estão alem das bactérias, infecções e contradições. Lembro-me de um velhinho, meu amigo, que no leito de morte disse à filha que queria comer um pastel. “Mas papai”, ela argumentou, “fritura faz mal...”
Ela não sabia que os morituri estão além do que faz bem e do que faz mal.
Quero também ter a felicidade de poder conversar com meus amigos sobre a minha morte. Um dos grandes sofrimentos dos que estão morrendo é perceber que não há ninguém que os acompanhe até a beira do abismo. Eles falam sobre a morte e os outros logo desconversam. “Bobagem, você logo estará bom...” E eles então se calam, mergulham no silêncio e na solidão, para não incomodar os vivos. Só lhes resta caminhar sozinhos para o fim. Seria tão mais bonita uma conversa assim: “Ah, vamos sentir muito sua falta. Pode ficar tranquilo: cuidarei do seu jardim. As coisas que você amou, depois da sua partida, vão se transformar em sacramentos: sinais da sua ausência. Você estará sempre nelas...” Aí os dois se dariam as mãos e chorariam pela tristeza da partida e pela alegria de uma amizade assim tão sincera.
Alguns há que pensam que a vida é coisa biológica, o pulsar do coração, uma onda cerebral elétrica. Não sabem que, depois que a alegria se foi, o corpo é só um ataúde. E aí os teólogos e médicos, invocando a autoridade da natureza, dizem que a vida física deve ser preservada a todo custo... Mas a vida humana não é coisa da natureza. Ela só existe enquanto houver a capacidade para sentir a beleza e a alegria.
E assim, apoiados nessa doutrina cruel, submetem a torturas insuportáveis o corpo que deseja partir – cortam-no, perfuram-no, ligam-no a maquinas, enfiam-lhe tubos e fios para que a maquina continue a funcionar, mesmo diante de suas súplicas: “Por favor, deixem-me partir!” E é este o meu desejo final: que respeitem meu corpo, quando disser: “Chegou a hora da despedida”. Amarei muito aqueles que me deixarem ir. Como eu disse: amo a vida e desejo viver muitos anos mais, como Picasso, Cora Coralina, Hokusai, Zorba... Mas só quero viver enquanto estiver acesa a chama da alegria.

TEXTO RETIRADO DO LIVRO : NAVEGANDO. DE RUBEM ALVES. PAGINA 25